
No livro Tremendas Trivialidades, num texto intitulado Os passarinhos que não cantam, G. K. Chesterton escreveu que, ao observar arte medieval, reparou que as figuras representadas a trabalhar pareciam estar de boca aberta: “Se havia nisto realmente um significado, ou se era meramente um produto acidental de uma arte ainda jovem, não sei. Mas, enquanto me interrogava, lembrei-me de que o canto se relacionava com muitas das tarefas que aquelas figuras sugeriam; de que havia cânticos do ceifeiro que ceifa e cânticos do marinheiro que marinha. Estava ainda a pensar sobre este pequeno problema, quando passei pelo molhe de Ostend e ouvi alguns marinheiros lançarem um grito compassado enquanto trabalhavam. Recordei-me então de que os marinheiros ainda cantam em coro, enquanto laboram, e até de que entoam coisas diferentes de acordo com a parte do labor que estão a efectuar nesse momento.”
Chesterton, desenvolvendo a ideia, lembrou-se então “que ainda há cânticos para as colheitas e para muitas outras tarefas agrícolas”. Isso levou-o à seguinte questão: por que razão não existem trabalhos modernos com cânticos ou poesia ritual? Ou seja: “Porque é que um jornal moderno nunca é impresso por tipógrafos cantando em coro? Porque é que os lojistas raramente cantam, se é que o fazem de todo?
Se os ceifeiros cantam ao ceifar, porque é que os contabilistas não haverão de cantar ao contabilizar, e os banqueiros ao realizarem o seu comércio bancário? Se há cânticos diferentes para cada uma das coisas que se fazem num barco, porque é que não há cânticos diferentes para cada uma das coisas que se fazem num banco?” Com humor, Chesterton chegou a escrever umas cantigas “apropriadas a cavalheiros comerciantes”. Eis um dos exemplos, um coro em louvor da “Adição Simples”, composto com o objectivo de acompanhar a tarefa de cálculo dos bancários:
Coragem, rapazes!, e levantem os livros-mestre, o sono e o ócio acabaram.
Ouçam como as estrelas da manhã bradam: ‘Dois e Dois são Quatro.’
Apesar de os credos e reinos hesitarem,
Apesar de os sofistas rugirem,
Apesar de chorarmos e empenhorarmos os nossos relógios, Dois e Dois são
Quatro.”
No final das suas reflexões, Chesterton não chegou a uma conclusão clara sobre a razão da ausência de cânticos de trabalho nas profissões modernas (o livro foi escrito em 1909: hoje, a variedade de ofícios seria bastante maior, não deixando, porém, de corroborar a tese do autor, a de ausência de canto), embora tenha chegado à impressão “de que há qualquer coisa na nossa vida que é espiritualmente asfixiante; não só nas nossas leis, mas também na nossa própria vida. Os bancários estão desprovidos de cânticos, não porque sejam pobres, mas porque estão tristes. Os marinheiros são muito mais pobres”. A tristeza no trabalho acontece de forma generalizada, não tendo nada que ver com o retorno financeiro desse mesmo trabalho, mas com a própria estrutura de produção. Erich Fromm diria que numa sociedade em que os trabalhadores são meras ferramentas de lucro, produzindo objectos que não lhes interessam ou lhes são inacessíveis, para poderem consumir produtos que não os realizam, não podem fazê-lo alegremente.
Diz-se — algumas séries e programas televisivos reproduzem esta ideia, seja verdade ou não — que nas cozinhas dos restaurantes o clima é de extrema pressão, irritabilidade, competitividade e barulho. Deixarei, por isso, o que talvez configure uma excepção àquilo que Chesterton observou e que, ao mesmo tempo, contraria o estereótipo de uma profissão. A certa altura, um amigo, o Giacomo, levou-me a visitar a cozinha dum restaurante italiano, cujo chefe era seu conterrâneo. Quando entrámos na cozinha, todos os que lá trabalhavam começaram a cantar a música That’s amore:
“When the Moon hits your eye like a big pizza pie
That's amore
When the world seems to shine like you've had too much wine
That's amore
Bells will ring ting-a-ling-a-ling, ting-a-ling-a-ling
And you'll sing: Vita Bella
Hearts will play tippy-tippy-tay, tippy-tippy-tay
Like a gay tarantella”
Cantavam partes em coro, mas também em diálogo, revezando-se nos versos, sem pararem de preparar os alimentos, sem pararem de cozinhar. Aquela visita teve sempre banda sonora, tal como a vida deveria ter, pelo menos, uma vita bella.
Escreve quinzenalmente no SAPO, à quarta-feira//Afonso Cruz escreve com o antigo acordo ortográfico