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Compotas e ditadores

Tiranetes terão muita dificuldade em compreender o gesto tão prosaico de fazer compotas, de fortalecer laços em vez de destruir a sociedade, o futuro e a esperança. Curiosamente, ao contrário da minha avó, é mais fácil ficarem para a História.
Compotas e ditadores
DALL-E

“Quem faria compotas se não tivesse a esperança de viver pelo menos o tempo suficiente para poder comê-las?”, pergunta Massimo Montanari, em Comida Como Cultura.

A pergunta poderia ser feita de outro modo, revelando algo mais interessante do que a crença na nossa continuidade (que para o ano ainda cá estaremos para lamber o indicador depois de o espetarmos no doce de abóbora): “Quem faria compotas se não tivesse a esperança de viver pelo menos o tempo suficiente para poder comê-las ou acreditar que, se acontecer morrer num futuro próximo, haverá quem as coma?”

Fazer compota é assim um acto de fé e de esperança. Há um optimismo implícito na própria pessoa que faz a compota quando espera comê-la; do mesmo modo que há um optimismo implícito em relação ao futuro das pessoas que o fazedor de compotas ama e que espera que possam comê-las.

Não me parece que oligarcas ou déspotas façam compota aos domingos (mas posso estar enganado, alguns parecem familiares amorosos, pelo menos nas fotografias: podem destruir milhares de vidas durante a semana, mas ao domingo escovam, com os filhos, o pelo do lulu da Pomerânia, bebem limonada e comem brownies). Enfim, talvez devido a preconceito (tenho muitos), inclino-me mais para a hipótese de que se o oligarca decide fazer compota ou espremer limões, o mais parecido com isso será ordenar a uma das criadas que o faça: em vez de acender o fogão, estala os dedos.

Na verdade, ninguém, hoje em dia, precisa de fazer compotas ou mandá-las fazer, as grandes superfícies têm prateleiras cheias delas, por isso a insistência nesta prática revela algo muito mais importante, que dificilmente encaixaria no currículo de um aspirante a vilão global: fazer compota implica pensar no futuro e não em destruí-lo. É acreditar que os netos ainda vão ter pão para barrá-la. Na Odisseia, os humanos são apelidados de “comedores de pão”, e esse é o traço civilizacional que, neste caso, tem valor ético (esta questão do pão poderá ser discutível, mas não irei problematizá-la aqui, pretendo apenas salientar que no contexto homérico serve para distinguir pessoas de monstros — que muitas vezes se confundem —, como Polifemo, o ciclope que devorava humanos). Poderia assim arriscar uma definição melhor para a humanidade, ampliando a da Odisseia: “comedor de pão com doce”.

Tiranetes terão muita dificuldade em compreender o gesto tão prosaico de fazer compotas, de fortalecer laços em vez de destruir a sociedade, o futuro e a esperança. Curiosamente, ao contrário da minha avó, é mais fácil ficarem para a História, porque infelizmente não nos esquecemos de alguns nomes, incontornáveis quando falamos de atrocidades. Mas também acontece muito a História não ter espaço destacado — pelo menos com esse protagonismo simultaneamente necessário e hediondo — para todos os sátrapas. O trono dos horrores, com direito a eternidade e tudo, já está cheio deles, todos profundamente competentes na sua ignomínia. Não é fácil chegar tão baixo, apesar das tentativas diárias que testemunhamos nos noticiários. A vileza nas suas formas mais grotescas implica muita dedicação à infâmia, por vezes décadas de crimes continuados. Assim, alguns conseguirão não ser esquecidos, mas muitos acabarão, mesmo depois de muita torpeza e indignidade, num rodapé qualquer da História, como vilões sem grande relevância: ironicamente, monstros falhados e ao mesmo tempo humanos falhados.

A compota é por isso uma lição prática de ética, sendo, na sua essência, um gesto político. Discreto, sim, mas carregado de convicção e humanidade: não é só doce, é humanamente doce. Abraça o tempo lento, a partilha, a dádiva, a relação social, familiar e de amizade. É um olhar: ver o futuro com alguma esperança. E ainda se faz aproveitamento de recursos e reciclagem. Quem diria que tudo isto cabe em antigos frascos de picles ou de feijões?

Portanto, se tiverem morangos e um domingo livre, façam compota. É mais revolucionário do que parece.

Escreve quinzenalmente no SAPO, à quarta-feira//Afonso Cruz escreve com o antigo acordo ortográfico

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