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Gentileza e democracia

No centro da democracia está a pergunta «e tu?», que liga as pessoas sem as apagar, preservando a individualidade e promovendo o diálogo.
Gentileza e democracia
DR

A pedido da editora da Assembleia da República, escrevi um texto para um livro ilustrado com o tema da democracia. Nele defendo que apesar de a democracia como sistema político ter nascido na Grécia Antiga — mais precisamente em Atenas, no século V a.C., durante o chamado século de Péricles (aproximadamente entre 461 e 429 a.C.) —, ela esteve sempre presente nas formas mais básicas de comportamento social, sendo por esse motivo intrinsecamente humana.

Nesse texto, refiro que o acto democrático começa com uma pergunta — como «o que querem comer?» — e não com uma imposição — «hoje a refeição será o que eu decidi» (o autoritarismo também é intrinsecamente humano, e amiúde fazemos uso dele, até de maneiras consideradas éticas, basta pensar como se lida com a nutrição das crianças: forçamos certos alimentos para que não comam apenas doces e batatas fritas). A atitude de questionamento, é uma forma de gentileza, é uma prática ancestral, nascida da necessidade de convivência e respeito mútuo. Perguntar ao outro o que deseja é reconhecer a sua dignidade e individualidade, ao invés de tratá-lo como parte indiferenciada de uma massa. A democracia, nesse sentido, não é apenas o domínio da maioria, mas o espaço onde cada voz individual tem valor e onde a identidade de cada um é afirmada. Só após ouvir todas as vozes é possível falar em povo ou maioria — a decisão colectiva nasce da soma de vontades individuais. Além disso, a democracia não é um sistema fechado, mas sim um processo aberto (tal como uma pergunta) e em constante evolução, cujo motor é a capacidade de mudar, de corrigir injustiças e de acolher novas ideias. No centro da democracia está a pergunta «e tu?», que liga as pessoas sem as apagar, preservando a individualidade e promovendo o diálogo. A democracia é, assim, um gesto contínuo de escuta e de construção comum do futuro.

Ao ler um livro de Edgar Morin, Só um instante, encontrei esta passagem sobre o tema em questão: «Chego ao ponto mais delicado e difícil da democracia, bem destacado pelo filósofo Claude Lefort, que dizia: "A democracia não tem uma verdade". A democracia entrega o poder, por alguns anos, à verdade de um partido, diferentemente de um regime totalitário ou de um regime teocrático, nos quais só há uma verdade absoluta e permanente.

É preciso aceitar que a democracia não tem uma verdade. Admitir essa característica própria à democracia, que não impõe qualquer verdade, mas que deixa o jogo das verdades diversas se expressar por meio do voto dos seus cidadãos.»

Efectivamente, a pergunta não é uma verdade (tal como não é uma mentira). Quando Morin diz que a democracia não tem uma verdade, não o faz por oposição à mentira, mas ao totalitarismo da ordem inflexível e insensível às vontades individuais. De facto, é na rigidez da autoridade de pensamento único que reside a mentira (ou as mentiras), ao fazer de determinada ideologia uma verdade absoluta. Assim, tal como escreveu Morin, a democracia entrega momentaneamente o poder à verdade de um partido, mas só o faz depois de perguntar individualmente, a cada eleitor, o que deseja, porque na génese do acto democrático está um sentimento delicado, ancestral e social: a gentileza.

Escreve quinzenalmente no SAPO, à quarta-feira//Afonso Cruz escreve com o antigo acordo ortográfico

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