
O recente Fórum de política monetária do BCE, em Sintra, ocorreu este ano num momento particularmente desafiante. Um tema central foi a incerteza extremamente elevada, em função das guerras, das tarifas, da imprevisibilidade (geo)política e da fragmentação da economia mundial. Neste contexto, e como seria de esperar, Powell e Lagarde reafirmaram que as decisões do Fed e do BCE terão que ser tomadas reunião a reunião. O Chair da Reserva Federal americana encontra-se numa posição desconfortável, sujeito a uma constante pressão política da Administração Trump no sentido de baixar os juros (um dos pontos em que a Trumpnomics 2.0 assenta é na descida dos juros de longo prazo, aliviando as condições de financiamento das famílias, empresas e Governo Federal). Ora, os indicadores mais recentes para os EUA – mostrando um mercado de trabalho resiliente e alguma persistência na inflação (para além da aprovação pelo Congresso de um forte estímulo orçamental à economia) – não evidenciam nenhuma necessidade urgente de corte de juros e validam a postura paciente do Fed. Powell continua a defender que o aumento das tarifas alimenta riscos em alta sobre a inflação e em baixa sobre a actividade. Faz sentido, então, esperar por mais informação antes de tomar decisões. Foi bom ver os responsáveis dos outros principais bancos centrais, com Lagarde à cabeça, solidarizarem-se com Powell e defenderem a importância da independência dos bancos centrais. Mas com a expectativa de nomeação, em breve, de um substituto de Powell, o risco de perda de independência do Fed (na percepção dos mercados) mantém-se em cima da mesa.
Pelo seu lado, Lagarde descreveu o BCE como estando numa “boa posição” para lidar com a actual conjuntura, salientando o facto de o crescimento dos preços evoluir já em torno da meta. Em contraste com os EUA, o impacto das tarifas na economia europeia tende a ser desinflacionista, dado que: (i) as tarifas dos EUA representam um choque negativo sobre a procura na Zona Euro; (ii) elas têm contribuído (entre outros factores) para uma forte apreciação do euro face ao dólar, tornando as importações mais baratas; e (iii) o redireccionamento das exportações da China dos EUA para a Europa criam uma forte pressão concorrencial, pressionando os preços em baixa. É verdade que Lagarde já disse que o ciclo de descida de juros se aproxima do fim. Mas estes factores podem levar ainda a descidas adicionais. O que poderia contrariar isto? Retaliações da UE às tarifas dos EUA (um “tiro no pé” que seria bom não acontecer) e perturbações nas cadeias de abastecimento, gerando pressões em alta sobre os preços e forçando uma maior cautela do BCE.
Outros temas presentes no Fórum do BCE, a merecerem atenção (e cada um deles todo um artigo à parte), foram (i) a apreciação do euro (14% face ao dólar este ano), que ocorre apesar do alargamento do diferencial de juros face aos EUA e que o BCE quererá evitar que seja excessiva e demasiado rápida (ao mesmo tempo que não desdenharia um papel mais central da divisa no comércio e reservas externas mundiais); e (ii) a procura de legitimidade institucional e o aparente aumento da atracção das stablecoins. Este último ponto foi particularmente contestado – e bem – pela Presidente Lagarde, que salientou o seu impacto negativo na capacidade de os bancos centrais conduzirem eficazmente a política monetária, pondo assim em causa a soberania dos países. A maior utilização de meios e infraestruturas de pagamentos privados pode ter consequências negativas na estabilidade financeira. Nesse sentido, o BCE e outros bancos centrais defendem uma aceleração e fortalecimento da regulação. Mas estes cuidados chocam com o dinamismo no sector introduzido, agora em parte, por acções da Administração Trump legitimando os activos digitais. Este ecossistema deverá ser marcado por fortes tensões nos próximos anos.