Depois de uma época de afirmação ao serviço do Feirense, Jorge Pereira fez um balanço da sua carreira, refletindo sobre os melhores e os piores momentos enquanto profissional. Em entrevista ao Bola na Rede, o médio recordou os tempos de formação no Benfica, os colegas de geração, os treinadores que mais o marcaram e o momento especial da estreia na Primeira Liga frente às águias. De saída do clube de Santa Maria da Feira, Jorge Pereira falou ainda sobre o futuro e o desejo de experimentar uma nova aventura no estrangeiro.

Bola na Rede: Olá Jorge Pereira. Antes de mais, obrigado por nos conceder esta entrevista.

Jorge Pereira: É um prazer estar aqui.

Bola na Rede: Como surgiu esta tua paixão pelo futebol?

Jorge Pereira: Venho de uma família ligada ao futebol. O meu pai é completamente louco por futebol, mesmo fanático, como se costuma dizer. Também cresci a ver o meu irmão a jogar até aos 33/34 anos, sempre num nível um bocadinho mais baixo. A minha adolescência foi praticamente toda a acompanhá-lo para todo o lado. Quando ele ia jogar, eu ia também, e acabava por jogar à bola no campo ao lado ou por perto. Via muito futebol e gostava de jogar. No fundo, era o único passatempo que eu e o meu irmão tínhamos.

«Em termos desportivos e profissionais, o Benfica foi fundamental»

Bola na Rede: Fizeste quase toda a tua formação no Benfica, depois de passares por clubes como a Sanjoanense e o Estarreja. Como é que recordas esses anos no Seixal?

Jorge Pereira: Eu fui com 10 anos para Lisboa. Aliás, gostei tanto de lá estar que hoje em dia até moro em Lisboa. Mas na altura era um miúdo e agora olho para o meu sobrinho com essa idade e nem sei como é que os meus pais me deixaram ir, sinceramente (risos). Mas foi o passo certo na altura. Já lá vão 17 anos e, olhando para trás, acho que foi o que me deu todas as bases, dentro e fora de campo. O Benfica é um clube extraordinário, um dos maiores de Portugal, se não o maior e não me arrependo nem por um segundo. Aprendi muito, cresci com as melhores condições possíveis, apesar de ter perdido alguns momentos da infância. Em termos desportivos e profissionais, foi fundamental. Só tenho de agradecer aos meus pais por me terem deixado dar esse passo, porque hoje estou onde estou graças a essas bases que me foram incutidas desde muito novo.

Bola na Rede: Jogaste com bastante regularidade durante os anos em que estiveste no Benfica. Como foi essa experiência dentro de campo?

Jorge Pereira: Sim, para nos deslocarmos para Lisboa tínhamos mesmo de ser um bocadinho diferentes dos outros. Quando cheguei cá, consegui impor-me, igualar-me aos meus colegas e acabei por jogar sempre. Estive 8 ou 9 anos no Benfica e fui sempre opção até ao meu segundo ano de júnior. Depois, na transição para a equipa B, perdi algum espaço e eu queria era jogar. Na altura foram diretos comigo e disseram que provavelmente não ia ter tantas oportunidades. Mas até aí, sempre que estive no clube fui aposta e, como consequência, também fui chamado às seleções, o que é sempre um motivo de orgulho. Claro que gostava de ter continuado, mas na altura não surgiu essa oportunidade.

Bola na Rede: Partilhaste balneário com nomes como João Félix, Rúben Dias, Renato Sanches ou Florentino. Na altura já imaginavas que eles pudessem chegar tão longe?

Jorge Pereira: Naquela altura, estávamos dentro de uma bolha e nem tínhamos bem noção de onde estávamos. Aquilo para nós era tudo normal. Claro que percebíamos que eles eram muito bons, melhores que os outros até, mas prever que chegassem a uma seleção, à Champions League ou às equipas A dos grandes… era algo difícil. Até porque o contexto era outro. Não se apostava tanto nos jovens, a mentalidade era diferente, vinham muitos jogadores da América do Sul, a estrutura era outra, os treinadores também. Felizmente, isso mudou e ainda bem. Hoje em dia olhas para a seleção e vês muitos jogadores que passaram pela formação do Benfica. Agora, olhando para alguns nomes da altura… O maior exemplo que costumo dar é o João Carvalho, que está agora no Estoril. Ele enchia-me as medidas todas. Lembro-me que às vezes dizia no treino ‘hoje vou treinar só com o pé esquerdo’ e mesmo assim era melhor que os outros! Claro que o Rúben Dias, o João Félix, o Ferro, o Renato, o próprio Guga, com quem voltei a partilhar balneário mais tarde no Famalicão, todos eles tinham potencial para chegar à Primeira Liga, ou à equipa principal. Mas naquela altura não tínhamos noção de que iam chegar a patamares internacionais.

«Sou um jogador de passe e de pensar o jogo»

Bola na Rede: Que características é que mais destacas no teu jogo enquanto médio?

Jorge Pereira: Já passei por várias divisões e contextos diferentes, e isso acabou por me dar um bocadinho de tudo. Saí de uma realidade como a do Benfica, onde jogava como médio numa equipa que, em 90% dos jogos, tinha bola e estava sempre por cima do adversário. Isso deu-me alguns ‘tiques’, porque gosto muito de ter a bola no pé, gosto do jogo apoiado. Nunca fui fã do jogo de transição, das segundas bolas ou da luta constante. Mas os contextos em que estive obrigaram-me a mudar essa mentalidade. Lembro-me bem quando cheguei ao Campeonato de Portugal e à Liga 3, e comecei a jogar a 6, apesar de gostar mais de jogar a 8. Era um 6 que queria sair a jogar, construir, mas percebi rapidamente que, se não mudasse a minha atitude dentro de campo, ser mais agressivo, mais direto, mais intenso, não ia ter espaço. Os treinadores diziam-me: ‘tens muita qualidade com bola, mas aqui precisamos de luta e intensidade’. Tive de me adaptar. Hoje em dia, acho que tenho um pouco de tudo. Sou mais um jogador de bola, de passe, de pensar o jogo, mais do que um puro recuperador. Mas se for preciso fazer esse papel de box-to-box ou recuperar bolas, também consigo, porque fui ganhando essas bases nas divisões onde joguei.

Bola na Rede: Quando sais do Benfica em 2017/18, acabas por assinar pelo Famalicão. Foi uma época em que jogaste menos. Como foi lidar com essa transição, sair de uma formação de topo, onde jogavas quase sempre, para um contexto diferente, com menos minutos?

Jorge Pereira: Costumo dizer que foi o ano mais importante da minha vida profissional. Saí de um contexto onde jogava sempre e tinha as melhores condições do país, e fui parar ao antigo Famalicão, que ainda não era SAD, era gerido por pessoas que gostavam muito do clube, mas que não tinham as mesmas condições de agora. Cheguei a um plantel de Segunda Liga, com jogadores mais experientes, mais velhos, e tive mesmo de abrir a pestana… senão, não tinha hipótese. Foi o ano da minha carreira em que joguei menos, mas ao mesmo tempo foi o mais importante. A nível mental, deu-me uma base fortíssima. Eu achava que era forte mentalmente, mas é completamente diferente sair de uma realidade onde és titular, és falado, tens protagonismo, para passares a ser o 19.º jogador, a ires para o banco, e às vezes nem ires aquecer. Foi duro. Estava longe de casa, tive de fazer esse trabalho sozinho, mas hoje vejo que foi fundamental. Costumo dizer: nós temos de estar preparados para não jogar. Vejo muitos colegas que saíram do Benfica e é difícil dar a volta, sair da formação de um grande e ir para patamares mais baixos, com outras realidades, nem toda a gente aguenta ou consegue recuperar. Demorei mais tempo do que esperava a chegar a um patamar profissional com regularidade, mas é o que é. O futebol tem muitos fatores. Se tive de passar por esses contextos foi por alguma razão. E a verdade é que cheguei à Segunda Liga, consegui impor-me, ser importante e ter regularidade.

Bola na Rede: Em 2018/19 foste emprestado à AD Oliveirense, que jogava no Campeonato de Portugal. Voltas a jogar com mais regularidade. Como foi essa época? Sentiste que foi importante para ganhares experiência?

Jorge Pereira: A nível desportivo, foi talvez a época mais complicada da minha carreira. Comecei no Famalicão, mas no dia 30 de agosto disseram-me que ia ser emprestado. O mercado já estava a fechar e, como vinha de um ano praticamente sem jogar, não tinha grandes opções. Fui para a AD Oliveirense porque havia um acordo com o Famalicão, fomos dois ou três colegas, e, sendo sincero, foi quase por obrigação. Queria muito jogar, claro, mas não foi uma escolha fácil. A realidade do CNS foi um choque. Vi colegas a passarem fome, a treinarem sem comer… coisas desumanas mesmo. Em Portugal, infelizmente, ainda há muitas equipas assim. Lembro-me de alguns colegas que tinham passado pela Primeira Liga e que já tinham alguma estabilidade, muitas vezes ajudávamos outros a comprar comida. Foi duro ver isso de perto. Desportivamente e apesar de tudo, foi importante. Eu vinha de um ano sem competir e consegui voltar a jogar. Tive de me adaptar, até porque trocámos várias vezes de treinador e a equipa lutava pela manutenção. Mas, felizmente, conseguimos manter o clube na divisão e eu consegui destacar-me. Costumo dizer que um médio só se consegue destacar se o coletivo funcionar. Um extremo pode decidir com uma arrancada ou um golo, mas um médio depende muito da equipa. Mesmo assim, nesse ano voltei a ganhar a alegria de jogar. Depois de tudo o que passei em Famalicão, muitas vezes sem sequer ser convocado, foi o ano mais difícil, mas talvez o segundo mais importante da minha carreira. Foi também um ano em que ganhei valências defensivas. Tive de ser mais combativo, mais intenso, e isso ajudou-me muito. Até tive algumas propostas em janeiro, mas o Famalicão não me deixou sair. No final, voltei ao Famalicão para jogar a Liga Revelação e acabei por renovar contrato.

«Tive medo de nunca mais conseguir voltar a um contexto profissional»

Bola na Rede: O facto de saíres da formação do Benfica e de um clube como o Famalicão na Segunda Liga para o Campeonato de Portugal gerou algum receio de não voltares a esses patamares?

Jorge Pereira: Sim, tive esse receio. Na altura ainda nem existia a Liga 3 e lembro-me perfeitamente do primeiro treino na AD Oliveirense… Saí do treino, fiz o caminho todo a chorar e a perguntar a mim próprio onde é que me fui meter. Queria jogar, claro, mas estava longe da minha família, da minha namorada, e tive de me agarrar a isso e mentalizar-me de que tinha de dar tudo naquele ano. Sempre tive o sonho de ser profissional, saí de casa muito novo com esse objetivo, de viver do futebol. Mas sim, tive medo de nunca mais conseguir voltar a um contexto profissional. Uma coisa é jogares no CNS numa equipa que luta pela subida e onde te consegues destacar… outra é estares numa equipa que luta para não descer, a maior parte do tempo sem bola, a defender e, para um médio, é muito difícil destacar-se assim. Felizmente, consegui. Tive regularidade, consegui mostrar-me e isso permitiu-me voltar ao Famalicão e dar mais um passo na carreira.

Bola na Rede: Findada a época, acabas por ter a oportunidade de experienciar a Liga Revelação logo no primeiro ano de existência em 2018/19. Para primeiras impressões, o que achaste da Liga na altura?

Jorge Pereira: Na altura era tudo novidade. Nós próprios não sabíamos muito bem que tipo de competição íamos ter, se as equipas iam descer jogadores das equipas A, como seria o nível competitivo, esse tipo de coisas. Mas no meu primeiro ano gostei bastante, sinceramente. As equipas jogavam o jogo pelo jogo, sem aquela pressão da descida, que muda completamente a forma de jogar. E isso, para nós jogadores, é muito bom. Acho que também havia uma vontade grande dos jogadores e treinadores em se valorizarem, por isso a liga era encarada como uma boa montra. É verdade que, numa fase final, havia dois ou três jogos em que se notava mais a parte tática e estratégica, mas, na maior parte do tempo, o destaque ia para a qualidade individual dos jogadores. Se calhar para um treinador não era tão apelativo, havia muitos golos e jogos mais abertos, mas para quem jogava, era muito divertido. No geral, gostei muito da experiência. Hoje em dia não acompanho tanto, mas sei que continua a ser um espaço importante para o desenvolvimento dos jovens. Acho mesmo que estas ligas são fundamentais para um jogador dar o passo seguinte para o futebol profissional. Muitos dos que hoje estão na Primeira Liga ou até na Seleção passaram por lá. Se tivessem caído diretamente num Campeonato de Portugal, provavelmente não teriam tido força mental para dar a volta.

Bola na Rede: Em 2020/21, apesar de não teres feito nenhum jogo oficial pela equipa principal, chegaste a ser convocado para alguns jogos da Primeira Liga e Taça de Portugal. Como olhavas para aquela equipa do Famalicão, com vários craques e que ficou em 6.º lugar na Primeira Liga?

Jorge Pereira: Olhava com admiração, mesmo. Era uma equipa praticamente nova, com jogadores muito jovens, muitos deles da minha geração, mas com uma qualidade inegável. Eu ia aos treinos e aquilo era uma maravilha (risos). Sou um jogador que gosta muito de treinar e, sinceramente, aquilo era um sonho para mim. A bola rolava com uma qualidade impressionante, dava mesmo gosto. A maioria desses jogadores está hoje em patamares muito bons do futebol. Felizmente, tivemos um treinador que gostava do jogo pelo jogo, que soube aproveitar bem as características técnicas e táticas dos jogadores que tinha, e isso refletiu-se numa época muito positiva. Eu não me cheguei a estrear infelizmente, se calhar se não fosse a pandemia talvez tivesse acontecido, mas foi incrível poder viver aquele ambiente por dentro. A qualidade dos treinos e do grupo era mesmo muito alta. Para mim, foi uma mudança gigante. Passar de um contexto de Campeonato de Portugal, onde se vive muito de sacrifício e sofrimento, para um ambiente como a Liga Revelação, com boas condições de treino e depois ainda ter a possibilidade de estar nas convocatórias da Primeira Liga, foi muito especial. Naquela altura, comecei novamente a acreditar que seria possível singrar.

Bola na Rede: Gostava de destacar dois jogadores daquela equipa: Pedro Gonçalves e Nehuén Pérez, hoje no Sporting e no FC Porto. Tinhas a sensação de que iam chegar a esse nível ou achas que evoluíram muito desde então?

Jorge Pereira: Em relação ao Pote, sim, acho que era claro para todos que ele tinha todas as condições para chegar a um clube grande. No treino, nos jogos, o rendimento dele era brutal. Tinha uma qualidade técnica acima da média, uma mentalidade supercompetitiva, era ambicioso e via-se que estava ali um jogador diferente, com tudo para dar o salto mais cedo ou mais tarde. O Nehuén era diferente. Na altura, não sei como é agora, era um jogador que no treino mostrava menos, até se podia dizer que era um bocado preguiçoso, não ligava tanto ao treino. Mas depois chegava ao jogo e era incrível. Era mais novo do que eu, tinha um talento brutal, talvez até maior do que muitos outros, mas lá está, olhavas para um Pote supercompetitivo, com vontade de fazer golos e assistências e era diferente por esse fator. Mesmo assim, o Nehuén chegava ao jogo e demonstrava claramente que tinha tudo para jogar num grande. Acho que demorou mais a afirmar-se por essa questão mental, mas qualidade, ele tinha de sobra.

«Estrear-me na Primeira Liga frente ao Benfica foi um sentimento inexplicável»

Bola na Rede: Logo no primeiro encontro do Famalicão na temporada 2020/21 acabas por ser titular frente ao Benfica, mas a lateral-direito. Como é que te sentias nesse jogo e por que razão o mister João Pedro Sousa te colocou nessa posição?

Jorge Pereira: Acho que, na altura, o Famalicão só tinha um lateral-direito de raiz no plantel, o outro era dos sub-23. Durante a pré-época, como eu não estava a ter muito espaço no meio-campo, o mister começou a usar-me a lateral-direito em alguns jogos, e a verdade é que as coisas estavam a correr bem. Eu sempre tive essa mentalidade de médio que se adapta, gosto de pensar o jogo e isso ajuda a cumprir em várias posições. Consegui cumprir bem a missão, subir no terreno, defender, e até me chegaram a dizer que podia ser um bom lateral, embora nunca tivesse olhado para isso dessa forma. Na semana antes do campeonato começar, o mister chamou-me ao gabinete e disse-me: ‘Tens andado a treinar bem a lateral… Se eu te puser a lateral-direito, o que achas?’ E eu respondi logo que queria era jogar! (risos) Ainda por cima, estrear-me na Primeira Liga e logo frente ao Benfica… foi um sentimento inexplicável. Joguei fora da minha posição, mas não podia recusar. Era um sonho tornado realidade, contra uma equipa recheada de craques. Lembro-me que apanhei o Everton Cebolinha e o Grimaldo naquele jogo. Infelizmente, ainda na primeira parte, rasguei o adutor. O jogo também acabou por correr mal, perdemos 5-1, mas até à lesão acho que estava a cumprir bem. Foi duro, porque aquela lesão afastou-me da equipa principal durante dois ou três meses. Foi uma lesão muscular que nada fazia prever… mas faz parte do futebol.

Bola na Rede: No final dessa época, desvinculas-te do Famalicão e assinas pela Sanjoanense. Apesar de uma primeira época em que lutaram pela manutenção, mesmo sendo disparadamente a melhor equipa em termos pontuais, na segunda época estiveram muito perto de subir à Segunda Liga. Foi uma boa temporada para ti?

Jorge Pereira: Em relação à primeira época, foi especial por voltar à minha terra. Eu nasci na Venezuela, mas fui para São João da Madeira ainda em pequeno, por isso foi como voltar a casa, ao conforto dos meus amigos, da família, tirando a minha namorada, que não estava por perto. Tivemos uma grande equipa, muito jovem, e foi também o primeiro ano da Liga 3, por isso não sabíamos muito bem o que esperar: que tipo de jogo, que treinadores, que estilo de futebol. Lutámos até ao último jogo da fase regular pela fase de subida, falhámos por um jogo apenas, mas garantimos tranquilamente a manutenção e acabámos em primeiro lugar no nosso grupo. Na segunda época, com uma base já bem consolidada e reforçada com dois ou três jogadores que vieram a ser muito importantes, conseguimos atingir a fase de subida e estivemos mesmo muito perto de chegar à Segunda Liga. Se fores ver, quase todos os jogadores dessa equipa estão hoje na Primeira ou Segunda Liga, o que mostra bem a qualidade que tínhamos. Era um grupo de jogadores jovens, muitos ainda desconhecidos, com muita vontade de se mostrar e valorizar. Tivemos também a sorte de apanhar treinadores que conseguiram tirar o melhor de nós, que sabiam aproveitar as nossas qualidades, e uma direção que apostava num estilo de jogo que nos permitia crescer e atingir outros patamares. Por isso, sim, foi claramente uma boa temporada para mim e para muitos de nós.

Bola na Rede: Em termos de competitividade e qualidade, com base na tua experiência, qual é a divisão mais forte em termos de qualidade e competitividade: a Liga 3 ou a Liga Revelação?

Jorge Pereira: Sem dúvida, a Liga 3. É completamente diferente teres uma liga onde estás a lutar para subir, para te manter ou até para não descer, do que teres uma competição onde o foco principal é valorizar-te e tentar dar o salto para a equipa principal, como acontece na Liga Revelação. A Liga 3 foi uma competição que a FPF criou e, na minha opinião, fez muito bem. Se olhares ano após ano, percebes que há sempre uma grande competitividade. Dou-te um exemplo: o Alverca. Subiu da Liga 3 e conseguiu rapidamente chegar à Primeira Liga. Este ano tinham muitos jogadores do Santa Clara, é verdade, mas também tinham vários que vieram diretamente da Liga 3. O Felgueiras é outro bom exemplo. Este ano fez uma Segunda Liga super tranquila praticamente só com jogadores que tinham estado na Liga 3. Isso diz muito sobre a qualidade e a exigência dessa divisão. As equipas da Liga 3 estão recheadas de bons jogadores. Se olhares com atenção, percebes que muitas delas faziam tranquilamente um bom campeonato na Segunda Liga. Eu costumava brincar com o Rúben e dizíamos muitas vezes: se tivéssemos conseguido subir com a Sanjoanense, com aquela equipa e aqueles jogadores, fazíamos um campeonato tranquilo na Segunda Liga.

Bola na Rede: Se tivesses que descrever numa palavra cada divisão de futebol em Portugal, desde o Campeonato de Portugal até à Primeira Liga, qual escolherias?

Jorge Pereira: Para o Campeonato de Portugal: Oportunidades. Liga 3: competitividade. Liga Revelação: valorização. Segunda Liga: Consistência. Primeira Liga: Qualidade.

Bola na Rede: Na temporada 2023/24, assinas pelo Feirense e, apesar de voltares a ter regularidade, como classificas a época a nível pessoal e coletivo, tendo em conta que terminaram na 16.ª posição da Segunda Liga e tiveram de disputar o playoff de despromoção, onde acabaram por vencer o Lusitânia de Lourosa?

Jorge Pereira: Eu já tinha passado pela Segunda Liga, mas não tinha bem noção do que era o jogo jogado ali. Quando chego ao Feirense, o clube estava com problemas entre a SAD e o clube, e isso já complicou logo as coisas. No início da época andávamos a treinar e a jogar em campos emprestados durante uns dois ou três meses, e isso afeta bastante, principalmente a nível psicológico. E numa liga como esta, é fundamental começares logo a somar pontos para não andares sempre atrás do prejuízo. Além disso, o plantel era praticamente novo, o que tornou tudo mais difícil. A nível pessoal, foi um ano muito positivo. Consegui impor-me, nem eu esperava jogar tanto ou ser sempre opção inicial, tanto com o mister Ricardo como com o mister Lito. Agora, olhando para o coletivo, acho que a posição na tabela não refletiu a qualidade do grupo que tínhamos. Estivemos sempre a correr atrás, e isso desgasta. Chegámos à parte final da época a lutar pela manutenção, conseguimos cumprir no playoff e manter o clube na Segunda Liga. O Feirense, pelas condições que tem, pela estrutura e até pelos adeptos, é claramente um clube de Primeira Liga.

Bola na Rede: Como foi trabalhar com o mister Lito Vidigal?

Jorge Pereira: Acho que há uma ideia errada em relação ao mister. Muita gente pensa que ele só quer defender e jogar em transição. Mas a realidade é que ele apanhou uma equipa a lutar pela manutenção, e num contexto desses, seja na Primeira ou na Segunda Liga, ou até nas grandes ligas europeias, as equipas jogam pelo ponto. É mesmo assim. Claro que havia um plano estratégico mais defensivo, tínhamos de nos adaptar. Não era estar 90 minutos atrás da linha da bola, mas sabíamos que tínhamos de ser pragmáticos e jogar no erro do adversário. Tínhamos de ganhar pontos. Uma coisa que posso dizer é que, com o mister Lito, os jogadores dão tudo. Nota-se logo isso. Mesmo que só tenha estado connosco durante sete ou oito jogos, é um treinador muito intenso, exige muito e todos os jogadores dão a vida. No nosso contexto, acho que fez o que tinha de ser feito para mantermos o clube na Segunda Liga.

Bola na Rede: Nesta segunda época, terminaram a seis pontos do 4.º lugar, que acabou por ser uma clara melhoria em relação à época anterior. Ainda assim, o objetivo do Feirense era subir ou apenas garantir uma época tranquila?

Jorge Pereira: Lembro-me bem da reunião que tivemos logo no início da época. A mensagem da administração foi clara: não queríamos repetir o que passámos na época anterior. O objetivo era fazer uma época tranquila. Nunca nos foi dito que era para subir ou ficar num lugar específico. O facto de termos conseguido manter a base da época passada foi importante, já havia entendimento entre os jogadores. Depois, chegaram três ou quatro reforços que acrescentaram muito, e apanhámos um treinador que percebeu rapidamente onde estavam as nossas fragilidades e onde podíamos crescer. Acabámos em 8.º, mas, sinceramente, acho que podíamos ter ficado mais acima. Houve jogos em que perdemos pontos no fim e cometemos erros infantis. Tivemos uma fase complicada com castigos, perdemos dois jogadores fundamentais e o mister também ficou fora do banco durante uns oito ou nove jogos e isso faz muita diferença. Se tivéssemos o grupo todo disponível, acredito que teríamos mais pontos no final. Houve ali uma fase em que ganhámos quatro ou cinco jogos seguidos e sentíamos que podíamos bater-nos com qualquer equipa. No geral, foi uma época muito positiva e acho que todos nos valorizámos.

Bola na Rede: Nestes dois anos no Feirense, há algum momento que destacas como especial? Foste um jogador com muita importância na equipa.

Jorge Pereira: Sim, sem dúvida. Eu, no início desta segunda época, disse a mim mesmo que tinha de fazer mais minutos do que no ano anterior, ter mais números, ser mais influente. Não sou muito de marcar golos ou de rematar, mas queria contribuir mais, fazer assistências, ajudar a equipa. Tive essa oportunidade e a sorte de ter um treinador que acreditou em mim. Acho que, tirando o último jogo, fui sempre titular e isso mostra a consistência que consegui ao longo da época. O facto de jogar sempre dá-te uma noção da importância que tens na equipa, e isso, para mim, foi muito gratificante.

«Em termos profissionais, esta foi a minha melhor época»

Bola na Rede: Olhando para todas as épocas da tua carreira, qual foi a melhor enquanto profissional? Ou o clube onde te sentiste melhor?

Jorge Pereira: Acho que, em termos profissionais, foi mesmo esta última época. Foi a temporada onde fiz mais números. Podia até ter mais assistências se os meus colegas tivessem ajudado aqui e ali (risos), mas sim, foi esta. Se tivesse marcado dois ou três golos, talvez tivesse ajudado ainda mais, mas acho que o mais importante foi a consistência. É difícil manter um nível alto em todos os jogos, mas consegui fazer 33 ou 34 partidas e, tirando uma ou outra onde sinto que estive abaixo, acho que tive sempre uma prestação positiva. Ter essa regularidade numa liga tão competitiva como a Segunda Liga é algo de que me orgulho.

Bola na Rede: Houve algum treinador que te tenha marcado mais, seja na formação ou no futebol profissional?

Jorge Pereira: Na formação, sem dúvida o Renato Paiva. Já naquela altura tinha um nível tático como nunca vi, sou-te sincero. E estamos a falar de formação. Na altura não tínhamos noção do que ele realmente era, mas hoje em dia não me surpreende nada que tenha chegado onde chegou. A nível profissional, o Tiago Moutinho foi muito importante para mim na Sanjoanense. Deu-me a oportunidade de desfrutar mesmo do futebol. Eu gosto de jogar com bola no pé, de um jogo apoiado, e ele entendia isso. Nessa altura jogava com dois médios fantásticos, o Ruben e o Pedro Pinho, e nós os três desfrutávamos a jogar futebol. O mister criava as condições ideais para isso. E claro, não posso deixar de falar deste último ano com o mister Vítor Martins. Deu-me consistência, confiança, fez-me sentir importante na Segunda Liga, e isso conta muito. Taticamente é muito forte, tem uma visão de jogo muito clara e objetiva. É jovem, tem qualidade e acho que vai chegar à Primeira Liga, não tenho dúvidas disso.

Bola na Rede: Renato Paiva, agora no Botafogo. Tens acompanhado o percurso dele?

Jorge Pereira: Para ser honesto, este ano não tenho acompanhado muito. Sei que a aventura no Botafogo começou com algumas dificuldades, mas agora as coisas parecem estar a correr melhor. Daquilo que me lembro, e não deve ter mudado muito, ele é muito forte na parte tática, na análise do adversário, a perceber onde pode explorar os pontos fracos das equipas. Se tiver tempo e estabilidade, vai ter sucesso, disso tenho a certeza. Basta olhar para o percurso dele: México, Equador… teve sempre sucesso. Isso não é por acaso. Uma coisa é ter uma época de sorte, outra é conseguir resultados positivos em vários países, com realidades diferentes. E ele comunica mesmo muito bem, o que também ajuda.

Bola na Rede: Recentemente deixaste o Feirense. Quais são os teus planos para o futuro?

Jorge Pereira: Neste momento, estou aberto a tudo, tanto em Portugal como fora. Já tive algumas abordagens do estrangeiro e, seja o que for que venha, vou analisar com calma. Vai depender do que for melhor e mais estável para mim e para a minha namorada. Ainda é cedo para tomar uma decisão. Não te posso dizer que prefiro ficar cá ou sair. Vai depender do projeto, do salário, do país, das condições. Todos procuramos o melhor para nós, e no fim do dia vai ser isso que vai pesar mais.

«Estou preparado para lutar por objetivos maiores»

Bola na Rede: Sentes que precisas de um estímulo diferente nesta fase da tua carreira?

Jorge Pereira: Sim, sem dúvida. Quero garantir o meu futuro, isso é essencial. Nunca fui muito de ficar muitos anos no mesmo clube, gosto de estímulos diferentes, de novos desafios, de sair da zona de conforto. Nunca joguei fora de Portugal, e isso sempre foi uma curiosidade. Não sei se será agora, mas é algo que quero muito experimentar. Não me sinto estagnado, sinto que estou preparado para lutar por objetivos maiores. Se for cá, gostava de estar num projeto para subir ou num patamar acima. Se for no estrangeiro gostaria de experimentar um estilo de vida, campeonato, mentalidade e cultura diferente em que eu possa evoluir.

Bola na Rede: Tens algum objetivo claro que ainda queiras alcançar na tua carreira? Alguma liga ou clube de sonho?

Jorge Pereira: Acho que qualquer jogador em Portugal tem o sonho de jogar na Primeira Liga. Já lá estive, mas foi uma passagem curta, e claro que gostava de voltar. Agora, nesta fase da minha carreira, procuro dar um passo em frente. Não digo que ficar no Feirense seria dar um passo atrás, é um clube enorme, mas quero algo novo. Se for no estrangeiro, então que seja numa Primeira Liga. Se for cá, num projeto ambicioso, que lute por objetivos maiores. No fundo, quero continuar a evoluir e a sentir que estou a crescer como jogador.

Bola na Rede: Obrigado pela entrevista Jorge.

Jorge Pereira: Foi um prazer.