Qual é o seu segredo para continuar com a mesma energia?

Ter confiança nos seres humanos: sei que nem tudo está decidido e que juntos, os adultos e os jovens, podemos construir situações de bem comum. Ter projetos e amigos gera forças. E olhar o passado com alegria, sabendo que não é tempo perdido, mas sim tempo vivido, o que é outra coisa. Na verdade, ter vivido é um privilégio que nos prepara para o que vem a seguir.

Pilar del Río
Pilar del Río Em Lanzarote, Espanha. Fotografia gentilmente cedida por Pilar del Río ao SAPO

Acha que as mulheres sofrem mais do que os homens no processo de envelhecimento?

Sofrem mais porque as circunstâncias económicas e sociais das mulheres são piores que as dos homens. A falta de respeito e de igualdade gera tragédias inadmissíveis em mulheres que envelhecem sozinhas, abandonadas, pobres, apesar de terem trabalhado toda a vida a cuidar do outro, dentro e fora de casa. Isto acontece em todo o mundo e continuará a acontecer até que se superem leis caducas e mentalidades insensíveis. Em qualquer caso, apesar desta condição, as mulheres encaram a vida com a mais humana aceitação. É verdade que tratamos bem de nós, vestimo-nos bem, maquilhamo-nos, mas isso é sinal de uma saudável sedução, não significa ansiedade quanto à beleza esquecida ou potencia a força perdida.

Segundo a ONU, a maioria dos países não protege as mulheres das consequências económicas e sociais da COVID-19. Qual é a sua opinião sobre este assunto?

Absolutamente de acordo com a ONU. E é dever das mulheres e dos homens reclamar aos estados, às empresas e aos criadores de opinião que se proteja as pessoas que cuidam na sociedade: quem se importa sofre mais riscos. É um dever de civilidade proteger as mulheres que cuidam.

Saramago morreu há 10 anos e a Pilar nunca se considerou sua “viúva”. Para os leitores ele nunca morreu e para si? Como é esta ausência?

Não é uma ausência. Trabalho e milito em José Saramago todos os días.

No campo afetivo é melhor não entrar, aqui cada um sabe de si. Mas é uma sorte ir vendo os seus livros em casas e livrarias, e poder dizer “olá” muitas vezes. Até no metro, quando vejo pessoas lendo um livro de José Saramago, saúdo com um “olá José” que ninguém percebe, mas é uma alegria profunda.

Pilar del Río
Em Lísboa, na manifestação do 8 de março, Dia Internacional da Mulher. Fotografia cedida gentilmente por Pilar del Río ao SAPO

Quais foram as maiores dificuldades e as melhores recompensas durante estes anos na direção da Fundação Saramago?

Perceber que os esforços e o investimento que diariamente se fazem na Fundação não caem no vazio, que a Fundação está instalada no imaginário dos portugueses e, poderia dizer, em muitos lugares do mundo.

Somos vistos e respeitados como fiéis depositários de um legado literário e humanista e, também, como trabalhadores de projetos ambiciosos que vão além das nossas forças.

Honra-nos saber que escritores de outros países e instituições sociais e culturais contam connosco. Somos poucos, mas os nossos dias não têm horas livres, sabemos que estamos a construir algo que é para o bem comum.

A que aspira mais uma Fundação tão importante na nossa cultura e que representa o único Prémio Nobel da Literatura em Língua Portuguesa, ainda que Saramago seja um autor incontornável para além do Nobel?

Aspiramos a ser uma casa da cultura contemporânea, um lugar de encontro e discussão. A Fundação não trata só de José Saramago, como o próprio deixou claro na Declaração de Intenções, trabalhamos para ser um lugar de encontro de culturas e também de causas que procuram aprofundar a democracia e colaborar na erradicação de males que escravizam, como o racismo, a homofobia, a violência contra as mulheres, as desigualdades sociais, económicas, o patriarcado, o feminicídio. Em nenhum destes temas, ou outros, somos neutros, defendemos a vida de todas e de todos, daí a Declaração de Deveres impulsionada pela Fundação.

Se pudesse voltar ao passado, o que diria a Pilar do presente à Pilar adolescente (ou podia ser ao contrário - o que sonharia a Pilar de 20 anos)?

Sou uma mulher afortunada a quem os sonhos se cumprem. A pessoa de hoje diria à pessoa do passado que chegar aos 70 pode ser estimulante, e que não tenha medo de sonhar porque por vezes, como já disse, os sonhos realizam-se. A adolescente que fui poderia dizer-me, talvez, para abrandar o ritmo. Mas não importa, não prestaria atenção…

Pilar del Río
Pilar del Río na biblioteca da sua casa, com o seu gato. Fotografia gentilmente cedida por Pilar del Río ao SAPO

Que dom da natureza gostaria de possuir? Porquê?

Um dom da natureza, não, quereria um dom dos deuses: a ubiquidade. Quero estar em muitos lugares ao mesmo tempo, em muitos países e com muitas pessoas. E sem ter que apanhar aviões, que detesto…

2020 está a ser considerado como um ano de incertezas. Ainda temos a batalha contra a pandemia COVID-19 para travar. Na sua opinião, quais serão as questões mais urgentes para a humanidade nos próximos anos?

Emergência climática: ação consertada de todos os governos para evitar tragédias como esta pandemia, que tanto tem a ver com as agressões que infligimos ao planeta. Meio ambiente, Saúde e Educação: estas são as minhas prioridades, estão na Declaração de Deveres Humanos que a Fundação impulsiona.

Este Natal, os seus pensamentos vão estar com...

Mais que em pensamentos pretendo estar presente neste Natal em sentimentos.

Quero sentir-me perto das pessoas de quem gosto: ainda que não possamos estar juntos, vamos inventar formas de partilha e transmitir a profundidade do afeto, da empatia e até do amor.

Podemos fazê-lo se essa é a nossa vontade. ¿Não voou a passarola com as vontades recolhidas por Blimunda?* Ponhamos mãos à obra para fazer outros prodígios neste estranho Natal.

*Blimunda Sete-Luas - personagem de Memorial do Convento (1982) de José Saramago, capaz de ver por dentro as vontades dos outros, que possui o dom da clarividência. Num tempo dominado pela aparência, o Portugal barroco, o amor que a une a Baltasar Sete-Sóis é um dos eixos temáticos de O Memorial do Convento.