As eleições do passado dia 18 ditaram a maior derrota das esquerdas desde 1974, que ficarão, no seu conjunto, com menos de 1/3 dos deputados da Assembleia da República e relegando o PS para terceira força política. Nunca assistimos a nada parecido na nossa democracia, nem quando o PRD ameaçou eleitoralmente o centrão em meados dos anos 80 do século passado.
Se é verdade que todos os democratas devem reflectir sobre o que se passou nestas Legislativas, incluindo as direitas, são sobretudo as esquerdas que devem tentar encontrar explicações para o que se passou, sem tomarem o caminho mais fácil de olharem para fora e para circunstâncias externas. O PS fica com menos deputados do que o Chega, o BE passa de cinco para uma deputada única, o PCP perde um deputado (o seu melhor deputado), o PAN mantém a sua deputada, mas perde votos e o Livre, o único a subir em votos e em número de deputados (mais dois), pode cantar vitória, mas parece óbvio que beneficiou de uma transferência de votos vindos do BE. Ainda assim, o BE perdeu quatro deputados e o Livre “apenas” conquistou dois.
Para a democracia, o caso do descalabro do PS é o mais relevante de analisar. O grande partido da esquerda portuguesa, posicionado historicamente no centro-esquerda e na moderação, do fundador Mário Soares, deveria fazer uma profunda análise ao que aconteceu, a porque aconteceu, e pensar como transformar o PS numa força política relevante novamente, para que não lhe aconteça algo semelhante ao PS francês, ao PS italiano ou ao PASOK grego.
E mais importante do que tentar encontrar uma estratégia para poder voltar a crescer e, quem sabe, regressar ao poder, é fazer mudanças profundas, de posicionamento, de narrativa, de bandeiras e até de imagem e de símbolo (que deste último nem o fundador gostava). Ou o PS se afirma como a grande força política do centro-esquerda, da esquerda moderada, da social democracia e do social liberalismo ou corre um sério risco de ter resultados ainda piores. Se o PS continuar num caminho de aproximação às forças à sua esquerda, o que não quer dizer que não dialogue com elas, então estará condenado à irrelevância.
O PS tem de voltar a falar para as pessoas das classes médias, as pessoas que saem de casa de manhã nos péssimos transportes públicos que o Estado proporciona ou nos carros para ficarem em filas de horas para chegarem dos seus empregos. O PS não pode esquecer que nas duas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto vivem quase metade dos habitantes do país. Mas também não esquecer da vida difícil das populações tantas vezes esquecidas dos distritos do Interior. Onde anda a bandeira da regionalização? E que soluções realistas e concretas para o Serviço Nacional de Saúde? E vai o PS continuar a querer ter ministros da Educação a favor de passagens de ano administrativas? E soluções para a crise da habitação?
Mas o grande erro do PS da sua última governação, e que mais ajudou à sua derrocada e à ainda maior ascensão do Chega, foi a sua política de imigração. O enorme erro da extinção do SEF, a criação dos vistos CPLP, a oferta de nacionalidade portuguesa quase sem critério, o total laxismo em relação às entradas de estrangeiros em Portugal… que resultou na entrada de 1,4 milhões de pessoas em poucos anos. Esta foi uma mudança demográfica ainda maior do que a vinda dos portugueses que voltaram a Portugal após o fim da guerra colonial e a independência dos PALOP.
Uma mudança de dimensões tão grandes que está a causar problemas e forte pressão nos serviços públicos. Numa sociedade com cerca de 10 milhões, receber em muito pouco tempo bem acima de um milhão de pessoas causa vários desafios que o governo de António Costa tentou esconder. E foram as pessoas comuns, que andam todos os dias na rua e que recorrem aos serviços públicos que começaram a perceber que o acesso a todos esses serviços, pagos com os seus impostos, pioraram grandemente. Isto acrescentando à quase total ausência de políticas de integração, que levaram muitos imigrantes a viver em condições profundamente degradantes.
Ou o PS se aproxima dos seus partidos-irmãos do Centro e Norte da Europa, com propostas de políticas de imigração mais razoáveis e humanas, ou tanto o PSD como o Chega terão fortes possibilidades de continuarem a ficar à sua frente em futuras eleições para a Assembleia da República. Este é um dos temas dominantes e decisivos em actos eleitorais em toda a Europa. E o PS tem uma escolha a fazer: ou prossegue a sua via facilitista ou muda para uma via responsável e sensata.
Já o PCP irá resistindo enquanto puder. Tem vindo a sofrer uma contínua queda, mas mais lenta do que muitos supunham, sobretudo depois das suas posições incompreensíveis sobre a invasão russa na Ucrânia. Mas tem algo a seu favor: foi o único partido das esquerdas que não deixou de falar para o seu eleitorado, as classes trabalhadoras. Os comunistas falam para os que têm baixos salários, para os que estão em situações precárias. E faz muito bem. Mas a sua força no futuro será mais visível nas ruas e nos sindicatos do que na Assembleia da República.
Por outro lado, o BE, tendo adoptado as lutas identitárias vindas das Américas, muitas delas desligadas da realidade vivida em Portugal e na Europa, tem vindo a perder ligação com a maior parte da população, mesmo com as pessoas de esquerda. O BE de hoje fala sobretudo para as comunidades imigrantes e para os activistas pró-Palestina (ou anti-Israel) do que para as pessoas comuns, que estão preocupadas se têm dinheiro até ao fim do mês, se vai haver mais uma greve de transportes, se vai chegar a tempo de ir buscar o filho à escola. Esta desconexão com a realidade faz o BE perder bem mais votos do que o caso do despedimento das mães lactantes, que tanto se falou. Ainda que para o eleitorado bloquista essa incoerência entre o que se apregoa e o que se faz seja importante.
E nisto o Livre foi beneficiado. É, pelo menos aparentemente, uma esquerda à esquerda do PS mais moderada do que o BE e PCP. Tem caras novas. Rui Tavares comunica bem. Depois do caso Joacine, deixou de priorizar as causas identitárias. E não tem bandeiras que assustem o eleitorado mais moderado, ainda que lendo o seu programa possa ter medidas que sejam mais radicais. Mas vive claramente um estado de graça e tem a simpatia de boa parte da comunicação social. E isso conta. Muito até.
Mas mesmo o Livre tem de fazer uma reflexão, ainda que mudanças mais significativas, caso queiram sobreviver, devam ser feitas no BE e, sobretudo, no PS, que é um partido estruturante deste regime democrático. E o país precisa de uma força de centro-esquerda forte e saudável.
Escreve no SAPO quinzenalmente à quinta-feira // Tiago Matos Gomes escreve com o antigo acordo ortográfico