"Uma substituição política injustificável", "uma reencarnação do tempo da troika", "um apaniguado de Passos Coelho". Num país bipolar e sem memória, que clama por líderes não partidários mas os desfaz no exato momento em que são aventados e onde a análise política feita na Assembleia e no comentariado oficial está ao nível do adepto de futebol, a escolha de Álvaro Santos Pereira para governador do Banco de Portugal (BdP) é uma má notícia.

Com pensamento independente, exibindo a marca anglo-saxónica da sua formação, profundo conhecedor da economia nacional e mundial, apresentando uma notável carreira internacional e amplos créditos económicos que o puseram, na última década, como economista chefe da OCDE, em Paris, foi imediatamente reduzido ao "ministro dos pastéis de nata" e atirado para o balde dos perigosos dirigistas serventes do executivo. Mesmo que os dois anos na pasta da Economia sejam o único cargo político que teve na vida e que toda a sua carreira tenha sido feita fora desta aldeia de caranguejos.

Ainda Álvaro não aterrou em Lisboa e a narrativa já está montada: foi escolhido por Passos Coelho, não tem gabarito para substituir o Ronaldo das Finanças. Factos? Quem quer saber disso? Nem sequer importa que a escolha do governador seja inerentemente política mas desejavelmente recaia sobre alguém de inquestionável competência e capaz de ser independente dos regulados (governo e banca), marcadores a que corresponde perfeitamente. É  de outro clube, é para queimar, nem que seja com não argumentos.

Mário Centeno, que Álvaro irá substituir, não é de todo desprovido de qualidades — bem pelo contrário. Desde logo, foi o ministro das Finanças que conseguiu o primeiro excedente de Portugal, tarefa difícil no governo da geringonça, mesmo com a limpeza já feita por Vítor Gaspar e Maria Luís Albuquerque até 2015. Esse trabalho, desenvolvido contra a própria esquerda que suportava os governos de Costa, valeu-lhe até o elogio de Schäuble, que lhe chamou Ronaldo das Finanças e o via bem num novo mandato à frente do Eurogrupo. Mas Centeno já desiludira quem nele confiara as contas certas, ao passar um cheque de 850 milhões ao Novobanco depois de António Costa jurar ao Parlamento que não entregaria nem mais um cêntimo...

Foi ele, ainda assim, que o primeiro-ministro achou ideal para o Banco de Portugal, anunciado meros 15 dias após ser afastado das Finanças, no verão de 2020; e só por uma oposição muito pública e veemente de Marcelo Rebelo de Sousa (muito criticada por toda a esquerda, aliás) não se transferiu diretamente dessa cadeira de regulador independente para o executivo, assumindo agora o lugar de primeiro-ministro, para libertar Costa para o lugar que já perseguia (e conseguiu), no Conselho Europeu, mantendo o poder na mão dos socialistas.

Provou Centeno, em toda a linha de atuação, que o facto de não ter o cartão de militante não o impedia de defender a mão fechada. E a memória coletiva, seletiva como sempre, fez-se esquecida dos tempos em que militava nas Finanças a obsessão do excedente ou a permanente cativação de fundos que deviam estar nos serviços públicos, tornando igualmente irrelevantes os editoriais no BdP em que enaltecia o investimento português lá fora porque de investimento direto estrangeiro em Portugal só havia evidência na compra de casas de milhões.

Álvaro Santos Pereira licenciou-se em Coimbra, doutorou-se e ensinou em várias universidades canadianas e britânicas, fez toda uma carreira internacional e depois do intervalo cívico que o trouxe ao governo retomou a sua carreira à frente da OCDE. Tem uma visão política? Naturalmente, e sempre a assumiu, em todas as suas matizes bem mais liberais do que as do governo de Montenegro e polarmente opostas aos socialistas radicais. Mas dizê-lo politicamente manchado ou de reputação duvidosa é de rir (ou chorar).

No entanto, até o PAN, que tentou fazer uma lei à medida para impedir a nomeação de Centeno para o regulador, apoiada no "conflito de interesses inultrapassável" que ali via a Entidade da Transparência, chora agora a sua não recondução.

A bipolaridade é de tal ordem que os habituais defensores da moral e da ética, contra Álvaro Santos Pereira conseguem até subvalorizar os mais de 200 milhões de euros que Centeno aceitou pagar à Fosun/Tranquilidade para construir uma nova sede do BdP na antiga Feira Popular, num negócio considerado de alto risco. E nem querem saber dos contratos por ele feitos nos últimos dias, já sabendo que não se manteria no cargo — incluindo a recondução do seu ex-chefe de gabinete das Finanças como diretor do gabinete de apoio ao governador e a promoção da mulher de Mourinho Félix a diretora-adjunta com efeitos apenas a partir de outubro. Tão pouco se recordam que há apenas ano e meio esteve a um passo de passar diretamente de regulador para primeiro-ministro — e assim Costa fazia mais uma vítima.

Centeno não era verdadeiramente desejado, mas cumpria a função de não ter sido escolhido por quem venceu as últimas legislativas. Que as decisões que sempre foram políticas o sejam sob uma governação à direita é algo imperdoável. Longa vida ao populismo...