I O funeral
Apesar da idade, a morte surgiu inesperadamente. Distraído a olhar para o telemóvel, não se apercebeu do carro a chegar. Dois segundos de distração bastaram para a tragédia. No dia do funeral, os amigos do Senhor Antunes aproximaram-se da viúva para dar os pêsames:
- Lamento muito a sua perda.
- Os meus pêsames. O Senhor Antunes era uma pessoa especial. Nunca mais me esqueço daquele dia em que me disse “Diogo, tu és a pessoa mais extraordinária que já conheci. Espero que um dia todo o mundo reconheça a extraordinária pessoa que tu és.” Recordarei para sempre essas palavras. O Senhor Antunes tinha essa fantástica qualidade de saber reconhecer pessoas extraordinárias.
- Lamento muito a sua perda, mas estou a ver aqui muita gente no funeral que não foi ao funeral da Dona Gertrudes. Os mesmos que aqui lamentam a morte do Senhor Antunes não disseram nada quando a Dona Gertrudes morreu.
- Os meus pêsames. Lamento muito a morte do senhor Antunes, mas também do Senhor Fagundes, da Dona Gertrudes, da Dona Li Shu, e do cão da Dona Maria que morreu a semana passada. Depois envio-lhe por email todas as pessoas que lamento terem morrido com exatamente o mesmo nível de revolta e tristeza com que lamento a morte do seu marido. Não há mortes mais importantes do que outras.
- Não quero ser desagradável, mas tem mesmo a certeza de que aquele no caixão é o Senhor Antunes? Não lhe parece que a distância entre o nariz e os olhos é maior do que nesta fotografia que ele publicou ainda há duas semanas?
- O seu marido tinha a vacina do sarampo, não tinha? Mais um vacinado do sarampo a morrer atropelado. Coincidências, de certeza.
A observar o funeral do lado de lá, o senhor Antunes arrepende-se de não ter feito amigos fora das redes sociais. Resta-lhe o consolo de, pela primeira vez em muitos anos, o seu corpo estar agora a tocar num pedaço de relva.
II A Declaração Solene
Para registo futuro, declaro solenemente que condeno todas as mortes, agressões, doenças e coisas más em geral que aconteçam, tenham acontecido ou venham a acontecer em qualquer parte do mundo, a qualquer pessoa ou animal, independentemente da sua origem, nacionalidade ou ideologia.
Se, por circunstâncias da vida, lamentar um caso em específico sem simultaneamente lamentar individualmente as outras centenas de casos semelhantes que tenham acontecido na última década, peço antecipadamente desculpa aos lesados desse lamento. Provavelmente, cometerei a grave falha de lamentar apenas um caso específico quando, certamente por malícia, me perguntarem se lamento um caso específico. Asseguro, no entanto, que a resposta positiva a essa pergunta maliciosa não implica um menor lamento em relação a casos semelhantes, ou mais graves, que tenham acontecido ou venham a acontecer.
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