
Há alguns anos, durante um lanche em casa de uma amiga argentina, a conversa foi entretida acerca de vários assuntos. Na mesa, além de mim e da tal amiga, pontuava uma outra senhora argentina, que apenas conheci na altura. Simpática e cortês, estaria nos seus sessenta anos, ou seja, ligeiramente mais velha do que a minha amiga e bastante mais velha do que eu. As palavras são como as cerejas, e rumando na direção de um tema rapidamente nos desviávamos para um outro completamente desligado do anterior. A certa altura, a recém-conhecida soltou uma frase que bloqueou a conversa: “O homem branco é um monstro!”
A princípio estudei o seu olhar e expressão, um pouco surpreendido pelo dito lapidar; contudo, não se lhe descortinava qualquer ironia, sorriso ou manha. Não – aquilo foi dito com convicção. Perguntei-lhe a razão ou o motivo de tal tirada, quando a minha amiga, sempre sensata, achou por bem interromper a conversa e mudar de tema. Ainda tentei responder, sem indelicadeza (afinal, eu, sendo branco, estava incluído na sua sentença), que talvez todo o homem fosse um monstro à sua maneira. Quando nos separámos nessa tarde, fiquei a pensar na afirmação daquela senhora. Para apaziguar a mente, concluí que, sendo, provavelmente, descendente de um povo nativo (contudo, o seu fenótipo contrariava essa ideia), terá ficado com um certo ressentimento em relação aos povos ibéricos, os ex-colonizadores do subcontinente sul-americano.
Somente mais tarde percebi que o sentimento partilhado durante esse lanche correspondia a algo mais generalizado e, inclusivamente, devidamente teorizado. Hoje pronuncio woke e wokismo sem dificuldade perante tais perspetivas do mundo. Posso dizer, sem pretender dar qualquer novidade, que corresponde a uma ideologia que, tal como o marxismo outrora, pretende passar por científico, isto é, uma doutrina dogmática que não admite alternativa e que se prende por uma crítica e um ataque, talvez sem precedentes, ao modo de vida ocidental. De modo contundente, o wokismo tem uma visão da História que, em vez da “luta de classes”, aposta tudo numa relação absoluta e antagónica e fatal entre dominadores e dominados, sendo os primeiros os tais homens brancos, os machos caucasianos, e os segundos o resto da humanidade.
Assim, o género masculino ocidental é responsável não só pela escravidão, usurpação, rapina e genocídio dos restantes povos, mas igualmente pelo sistema repressivo patriarcal que subjuga as mulheres no seu próprio meio. Perante este esquema redutor, praticamente todos se podem – e devem – declarar vítimas. O wokismo é uma filosofia da vitimização. (Manuel Maria Carrilho chama-lhe “cultura da vitimização”). De uma forma ou de outra, seja porque se é (ou se considera) gay ou não-binário, negro ou nativo, mas também se está na condição de fêmea, ocupa-se uma posição irremediável de vítima. A sociedade que se formou no Ocidente é, além de opressiva e repressiva, exploradora de todos quantos não são homens brancos: “o homem branco deve morrer”, nas célebres palavras de Fanon. Somente fazendo frente ao seu poderio imenso, através, inclusivamente, da luta armada e terrorista, à bala e à bomba, é que as vítimas lograrão abandonar a sua condição de explorados e de servos.
A intenção apontada é clara: tudo o que são instituições, costumes e cultura ocidentais é para repudiar: a democracia liberal, os direitos humanos, o casamento heterossexual e, obviamente, o capitalismo. Deixada para trás a dialética marxista, ou maximizando-a e universalizando-a a todos os oprimidos — a vítima está em todo o lado e é vítima por várias razões, sejam elas por ser, como apontámos, membro LGBTQ+, mulher, feminista, negro, mas também, claro está, operário —, resta realizar a Revolução. Para tal é imprescindível ir minando e corroendo por onde seja possível e sempre que for possível o edifício civilizacional do branco.
Que não restem dúvidas: o homem branco é machista, homofóbico, transfóbico, esclavagista, explorador, sionista, responsável pelo aquecimento global, numa palavra, um criminoso que tem de ser derrotado e eliminado.
Nesta ordem das coisas, a vítima é entronizada e endeusada, pois incarna o novo herói, o herói responsável pela crítica final e finalizadora, mas também por ser ela que vai dar o estoque final na sociedade patriarcal e segregacionista. E a vítima são potencialmente todos, todos aqueles que na limitada e alternativa visão histórica woke foram ou ainda são, de uma forma ou de outra, espoliados, reprimidos e prejudicados. Nesta perspetiva totalitária, a vítima — tal como os nazis pretéritos e presentes — necessita de espaço vital. E ser vítima nunca foi tão acessível: agora, qualquer um pode ocupar esse lugar, qualquer dito pode ser uma afronta a alguém, até um look pode ser apropriação cultural, e com consequências devastadoras para os réus, que já conheceram a realidade do despedimento e do suicídio.
Este processo de vitimização não conhece limites, havendo uma panóplia de meios de comunicação social prontos a dar canal à maldade dos infratores e ao comentário woke. As redes sociais ocupam lugar de destaque, multiplicando as vozes de acusação, formando os carrascos e promovendo cancelamentos. A presunção de inocência há muito que ficou esquecida – a condenação acontece na praça pública. Criam-se direitos (safe places – Carrilho) para cada vez caberem mais vítimas, à medida que se demolem os tradicionais. Até porque as agressões decorrem não de uma intenção de quem pratica o ato, mas residem e dependem unicamente da sensibilidade da vítima. Ou seja, cabe a esta, e pela primeira vez na História, o papel ativo na relação de ódio. A vítima é o anverso da medalha do indivíduo masculino ocidental: onde um está encontra-se o outro. Remetemos para o título do livro de Pascal Bruckner, Je Souffre, Donc Je Suis.
Professor e formador nas áreas de Filosofia, Psicologia, Sociologia, Turismo, História e Política