O 10 de Junho marcou o país, não pelos tradicionais motivos — a saber, Camões e o dia da Portugalidade e afins (mas sejamos institucionais: Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas) — mas pela questão do racismo. Ou melhor, de um racismo em particular. Se esse racismo existe de facto, larvar ou profundo e estrutural ou somente na cabeça de alguns intelectuais, é uma questão que merecerá a sua própria reflexão.
Os discursos da escritora Lídia Jorge e do presidente Marcelo esgrimiram contra as ideias de uma raça pura, de haver uma distinção entre um português geracional e um português de recente cepa, leia-se imigrado. Não tenho dúvidas de que haverá portugueses com herança e gerações atrás de si que se comportam como traidores, bem como existirão imigrantes (ou melhor, ex-imigrantes, agora portugueses) que respeitam, sentem e vivem o país nas suas várias dimensões, pelo menos nas dimensões possíveis para alguém recém-chegado (obviamente que o domínio da língua é fundamental para entender o restante). Não caberá a ninguém, julgo, medir ou pesar a portugalidade latente ou efetiva de uma pessoa que, por destino ou por escolha racional e emocional, vive no nosso solo pátrio. Se não podemos desconsiderar o amor à nação daqueles que, nascidos aqui, tiverem de partir para outras latitudes, por princípio, igualmente, não podemos deixar de dispensar o afeto a quem, nascido além, nos procura.
Na problemática do racismo, porém, não esquecendo a sua complexidade, há a distinguir dois tipos ou géneros: o bom racismo e o mau racismo. Contribuem diretamente para esta distinção a História recente do país bem como certa ideologia que ainda hoje impregna vários setores da vida nacional. Bastará estar minimamente atento à maioria da comunicação social para perceber as linhas marcantes desse ideário tal como as formas difusas com que brindam os portugueses na sua retorcida argumentação.
Antecipando a conclusão final, é fácil de ver que numa reta perpendicular ao problema do racismo — do mau racismo — está a subvalorização dos resultados eleitorais e das eleições em geral, algo que não se apresentava em tão vivas cores desde o PREC.
O PREC estava imbuído de uma segregação assumida e sem vergonha, aliás, propalada por todos os pontos cardeais como inelutável, visto ter o sabor e o saber dos ventos da História. Estar contra essa forma de racismo era estar contra o sentido da História, ou seja, ser reacionário, e, como tal, predispor-se a ser julgado, detido e perseguido pelos seus arautos e defensores. Esse racismo de bom tom assumia e presumia que um africano negro não podia adquirir a cidadania portuguesa, simplesmente não podia partilhar a sua portugalidade com os nativos europeus ou os brancos com quem partilhava as terras africanas. Mesmo contra a sua vontade, estava vedado a qualquer africano de pele escura pertencer a Portugal, potência colonizadora, e conforme a cartilha dizia, um país castrador, violador e impiedoso que escravizou e espoliou a santidade e virgindade das gentes e das savanas, sanzalas e selvas da Guiné, de Angola e de Moçambique.
Em nome da independência, da descolonização exemplar, da defesa e restauração das terras nativas aos seus filhos, mas também pelo vulgar interesse de maximizar e beneficiar várias formas de marxismo, o indígena estava condenado a pertencer à sua pátria refundada, agora sob uma nova bandeira agressivamente imposta, contudo livre de qualquer domínio europeu e imperial nefasto e corrupto. Os desalinhados com a nova política padrão (mais uma vez, estranha ao seu mundo e mundividência) agiam por ignorância desse caminhar implacável e imparável dos rumos da História. A nova ordem africana, este novo paraíso, livre e independente, nascia sob um racismo imposto pelos novos mandantes do velho continente que, conjugando as suas forças com os novos sobas da grande tribo, impunha uma castração com um rastro bastante bolorento e bafioso. Tratava-se, afinal, de um racismo aviltante, pois tinha a pretensão de agir para a felicidade desses povos africanos.
São conhecidos os resultados ab initio desta política: guerras civis, destruição, perseguição, golpes militares, matança e vendetta generalizadas. Aqueles milhares de africanos que aspiravam continuar a pertencer a Portugal, foram envolvidos num turbilhão de horrores nunca antes vistos naqueles territórios. Hoje, os mesmos ou os da sua linhagem, acusam, apontam o dedo e gritam racismo! ao menor lampejo de discriminação, real ou imaginária. Indignam-se perante acusações e detenções, mesmo quando justificadas pela lei, daqueles que outrora obrigaram a abandonar o país e a quem recusaram a cidadania portuguesa. Aparentemente, a senda da História é tortuosa…
O caso muito badalado de Marcelino da Mata expõe bem o nosso caso: num debate televisivo, Fernando Rosas, perante um tímido Ribeiro e Castro, acusava o ex-comando de, ao optar por Portugal, estar contra o curso da História e como tal devia ser condenado política e moralmente e ser-lhe recusado qualquer tipo de honrarias no seu funeral – tratava-se do militar mais condecorado do exército português. Rosas, como racista bom, apenas mantinha a atitude dos seus correligionários dos anos setenta.
Será bastante apelativa a ideia de ganhar na opinião pública (ou publicada) ou na rua o que se perdeu nas urnas. Se querem enfraquecer o Chega, não será, acredito, o melhor caminho. Também não será, com certeza, empolando um certo tipo de racismo — o mau racismo – que se dará a volta ao texto e aos resultados eleitorais. Talvez, antes de tudo, será reconhecendo e penitenciando-se pelo seu próprio racismo que, podendo ser de ontem e de acordo com o Zeitgeist, marcou para sempre toda uma geração.
Professor e formador nas áreas de Filosofia, Psicologia, Sociologia, Turismo, História e Política