Quais os principais problemas que afetam os rios portugueses?

A partir dos estudos desenvolvidos na bacia hidrográfica do Douro e que em grande parte se podem transpor para o resto do país, o principal problema que afeta os rios portugueses é a má gestão que é feita dos nossos recursos hídricos. Uma das principais causas que contribui para a morte lenta dos rios é a construção desnecessária de barreiras. Este é, de facto, um fator potenciador de vários problemas, como por exemplo o desaparecimento de espécies nativas, fundamentais para o equilíbrio dos ecossistemas. Se considerarmos que Portugal tem santuários de biodiversidade pelas suas características únicas, é imperativo tomar medidas que protejam estes habitats enquanto parte do nosso património nacional. O grande problema é que muitas das consequências causadas por este tipo de investimentos, além de invisíveis, são irreversíveis e podem pôr em causa o nosso bem mais essencial, a água, impossibilitando que gerações futuras a possam aproveitar da mesma forma.

Quais os principais fatores que os fizeram chegar ao estado atual?

Um dos principais fatores que contribuiu em grande parte para o panorama negativo dos rios em Portugal é o grande desconhecimento existente, nomeadamente sobre os impactos cumulativos da existência de tantas barragens e açudes e dos impactos ambientais, económicos, sociais que daí decorrem. A longo prazo, esta falta de conhecimento não garante a gestão ambiental, social e económica adequada dos nossos recursos hídricos. E é por isso que os estudos desenvolvidos no âmbito da Rede Douro Vivo têm um papel essencial, uma vez que ajudam os agentes responsáveis a criar soluções mais objetivas face aos problemas existentes.

Quais as zonas/rios do país mais afetadas e porquê?

Apesar de não ser possível traçar um cenário completo do estado das barreiras no país, identificando quais as zonas mais afetadas, devido à insuficiente monitorização e divulgação de informação por parte do Estado, é possível verificarmos que existem em Portugal mais de 8 000 barreiras, das quais, 1 200 na bacia do Douro. Este é um número bastante elevado e do qual não existia conhecimento, nem acerca do seu estado atual, o que é ainda mais preocupante. Estes estudos na bacia hidrográfica do Douro constituíram o primeiro grande passo dado no sentido de caracterizar de forma aprofundada a realidade num dos territórios mais afetados no país. Mas é necessário que a Agência Portuguesa do Ambiente expanda estes estudos para a totalidade do nosso território. Aquilo que sabemos é que os rios mais impactados no Douro são o Tâmega, afetado pela atual construção de três barragens previstas no Programa Nacional de Barragens, o Tua, o Coa, o Sabor e o Paiva.

Ricardo Próspero: «Um dos principais perigos para os nossos rios é continuarmos a construir barragens de forma desmedida»
Barragem Foz Tua créditos: Pedro D

Em termos de biodiversidade, que impacto a ação do homem já teve nos rios portugueses? Que espécies estão em maior perigo e já há algumas extintas?

A ação do homem, provocada por interrupções dos rios portugueses, tem um enorme impacto ao comprometer a continuidade dos ecossistemas ribeirinhos, a biodiversidade e a integridade dos habitats. Consequentemente, as suas espécies nativas. É responsável por ameaçar de forma direta e indireta várias espécies nativas, algumas ameaçadas, como a águia-real, o lobo-ibérico, a lampreia ou a enguia. Infelizmente algumas destas já estão extintas no território nacional, como é o caso do esturjão, que desapareceu na primeira metade do século XX. Mas também por favorecer o aparecimento de espécies invasoras, como a perca, a carpa e o siluro. Esta perda da biodiversidade não é um problema de agora e, por isso, é necessário tomar medidas que previnam estes efeitos irreversíveis sobre o nosso território.

Um estudo recente da GEOTA concluiu que as barragens no Douro estão a dizimar dezenas de espécies. O que está concretamente a acontecer?

De uma forma mais concreta, as barragens no Douro, e não só, estão a impactar de forma muito negativa a biodiversidade, por serem responsáveis pela destruição dos habitats, mas também através da degradação da qualidade da água que, invariavelmente, vai afetar a vida naqueles locais. E é por essa razão que o estudo desenvolvido no Douro pretende propor ao Estado medidas que possam ajudar a reverter a situação, de forma a contribuir para a preservação dos ecossistemas e do bem-estar das populações.

Ao interferirmos no curso natural dos rios o que acontece ao ecossistema?

O livre curso dos rios e linhas de água garantem um conjunto importante de benefícios para todos nós, associados aos ciclos da água, dos sedimentos e dos nutrientes. Ao interferirmos neste processo através da construção de barragens, açudes ou canais estamos invariavelmente a alterar esse curso natural do rio. Os ecossistemas ribeirinhos, como é o caso da bacia do Douro, desempenham funções, como a regulação do ciclo da água, o balanço sedimentar da orla costeira ou a provisão dos recursos naturais e culturais, incluindo para o turismo. No entanto, todos eles têm sido profundamente afetados pela interrupção dos rios da bacia. Todas estas barreiras ao livre curso do rio provocam uma fragmentação de habitats que leva a graves impactes ambientais, tais como a perda de biodiversidade e de conetividade ecológica – já que o rio perde a sua função primordial de corredor ecológico –, a perda da capacidade natural dos ecossistemas em depurar a água, com a consequente diminuição da sua qualidade, bem como a retenção de sedimentos e consequente efeito na erosão da orla costeira.

Ricardo Próspero: «Um dos principais perigos para os nossos rios é continuarmos a construir barragens de forma desmedida»
O siluro é uma espécie invasora que pode atingir 3 metros créditos: Wikimédia

Como se pode reverter o efeito nocivo destas barragens?

Reverter o efeito nocivo das barragens passa, em primeiro lugar, por optar por soluções alternativas muito mais eficientes, sustentáveis e com menor impacte ambiental. Nos locais mais afetados, medidas que passem pela implementação de passagens para peixes, pela remoção das barreiras identificadas como inúteis, de projetos de restauro ecológico e de caudal, ou até mesmo a recuperação de barragens que se encontram obsoletas, são algumas das opções. Mas é necessário ter algo em conta: os efeitos das barragens são dificilmente reversíveis. Mesmo que o seu desmantelamento aconteça, pode não ser possível devolver ao habitat todas as condições naturais de que este dispunha anteriormente. É por essa mesma razão que o GEOTA é contra barragens quando não existe uma necessidade justificada, tendo em conta o seu impacte.

 

O mesmo acontece noutros rios pelo país? Ou seja, as barragens são uma ameaça?

O Douro não é exceção e infelizmente o mesmo acontece noutros rios por todo o país. Muitas destas barragens, além de serem uma ameaça, não têm uso definido e podem ser consideradas obsoletas ou abandonadas, com consequências drásticas a longo prazo. Não só pelo declínio da biodiversidade, como também pela presença de espécies invasoras ou eutrofização da massa de água nas albufeiras, entre outros fatores que contribuem para o declínio dos ecossistemas.

Com as alterações climáticas, os próprios ecossistemas sofrem alterações. O que estão a verificar em termos de aparecimento ou desaparecimento de espécies nos rios nacionais? Algum exemplo que se destaque?

Em termos das alterações dos próprios ecossistemas, verificamos duas questões. Por um lado, o desaparecimento de algumas espécies que fazem parte do nosso património natural nacional e, por outro, o aparecimento de espécies invasoras, como é o caso do siluro, da perca e do lagostim-vermelho. Estas aproveitam-se das condições criadas pelas albufeiras – semelhante aos ambientes de águas paradas a que estão adaptadas – para exercer uma vantagem competitiva em relação às espécies nativas – mais adaptadas a rios livres -, concentrando-se sobretudo no troço principal do rio, onde há um maior número de grandes barragens construídas.

Ricardo Próspero: «É um perigo para os rios continuarmos a construir barragens de forma desmedida»
A eutrofização é o crescimento excessivo de plantas aquáticas créditos: GEOTA

Índice Planeta Vivo dedicado aos peixes migratórios de água doce mostra que, globalmente, estas populações sofreram um declínio de aproximadamente 76% entre 1970 e 2016. Portugal segue esta linha?

As populações de peixes migratórios de água doce, como o salmão, encontram-se ameaçadas pelos mais diversos motivos. Desde a construção de barragens, que provocam danos muitas vezes irreversíveis no ecossistema, impedindo a migração de muitos peixes do mar para as áreas de desova a montante, bem como daqueles que descem os rios para desovar no mar, como a enguia, ou a degradação do seu habitat. Portugal segue esta linha e são várias as espécies de rio afetadas por esta quebra, desde peixes, anfíbios, bivalves, entre outros. Para contrariar este declínio é fundamental promover o restauro de habitats e restabelecer a conetividade para os peixes migradores, através da remoção de obstáculos e a construção de passagens para peixes.

Quais os principais perigos atuais para os rios em Portugal que é necessário combater?

Existem vários perigos que são necessários combater e que colocam em causa os rios portugueses, sendo que um dos principais perigos é o facto de continuarmos a construir barragens de forma desmedida. Além disso, é necessário desenvolver um modelo compreensivo e eficaz para determinar quais as barreiras que podemos remover, de forma a restaurar os habitats do território, com benefícios potencialmente imediatos para os ecossistemas, a qualidade da água e para as populações ribeirinhas. O grande número de barreiras construídas em Portugal, das quais estão identificadas mais de oito mil, juntamente com o desconhecimento acerca dos impactos acumulados que decorrem dessas construções, não garante uma gestão adequada dos recursos e contribui ainda mais para o problema.

 

É possível combater esses perigos e não pôr em causa o formato de vida que temos?

Sim, totalmente. Existem várias soluções capazes de fazer frente a esses perigos e minimizar as pressões sobre os rios e que passam pela promoção da eficiência energética, o aumento do uso de energias renováveis alternativas e a necessidade de repensar os modelos de produção agrícola e de consumo de água, de forma a criar um maior equilíbrio entre o número de recursos disponíveis e aqueles de que podemos usufruir de facto diariamente. Existe um potencial enorme para o desenvolvimento de medidas alternativas de retenção de água para produção alimentar, bem como de modos de produção, espécies e variedades autóctones perfeitamente adaptadas às nossas condições climáticas. Dever-se-ia também promover a alteração de alguns dos nossos hábitos alimentares, de forma a incentivar o consumo de produtos que requeiram menos água.

Ricardo Próspero: «É um perigo para os rios continuarmos a construir barragens de forma desmedida»
Rio Tâmega créditos: Joâo Carvalho

O que o Governo tem de fazer para proteger os rios?

O Governo deve atuar em concordância com os estudos disponibilizados, reforçando a integridade natural e ecológica dos rios e troços de rios, através de medidas que protejam de forma permanente e efetiva os ecossistemas ribeirinhos e a sua biodiversidade. Vários atores e instituições têm proposto medidas de mitigação e resposta a estes impactes, nomeadamente, a inclusão dos resultados dos estudos agora apresentados no Plano de Gestão da Região Hidrográfica do Douro e a expansão de áreas protegidas, por exemplo. Acima de tudo, é necessário que o Estado promova um maior conhecimento acerca da problemática, de forma a encontrar as melhores soluções.

Que papel a sociedade civil pode ter para ajudar a manter os rios saudáveis?

A sociedade civil tem um papel fundamental na consciencialização relativamente ao tema das barragens e quais os impactos associados à sua utilização, assim como da conservação dos rios em estado natural, e, além disso, de uma forma mais objetiva, tem a capacidade de participar em propostas de lei que ajudem a reverter a situação, tal como o que o será apresentada pelo GEOTA. Esta será uma proposta de lei que visará estabelecer o enquadramento jurídico de rios e troços de rios livres, que defenderá que não devem existir obstáculos à livre circulação das águas. O objetivo será reforçar a integridade natural e ecológica dos rios, garantindo a sua preservação. Além disso, outro dos objetivos será assegurar a viabilidade económica de futuros empreendimentos, evitando investimentos avultados desnecessários e procurando criar um estatuto legal de proteção permanente dos rios e dos ecossistemas ribeirinhos.