O Presidente da República descreveu hoje os portugueses como uma mistura de povos vindos de todas as partes ao longo de séculos e defendeu que ninguém se pode dizer mais puro ou mais português.

Esta mensagem de Marcelo Rebelo de Sousa no seu discurso do 10 de Junho tinha sido também deixada antes pela escritora e conselheira de Estado Lídia Jorge (ver mais em baixo), presidente da comissão organizadora destas comemorações do Dia de Portugal, realizadas na cidade algarvia de Lagos.

“Aqui, neste lugar simbólico de tanta História feita e a fazer,como nos contou Lídia Jorge, uma das maiores destes tempos,aqui somos chamados a recordar, a recriar e a agradecer”, afirmou o chefe de Estado.

Ao “recordar os quase 900 anos da pátria comum”, Marcelo Rebelo de Sousa expressou “orgulho naqueles que a fizeram, vindos de todas as partes:gregos, fenícios, romanos, germânicos, nórdicos, judeus, mouros, africanos, latino-americanos e orientais”.

“E desde as raízes, lusitanos, lioneses, borgonheses, gauleses, saxões, os mais antigos aliados políticos.Recordar esses e muitos mais que de nós fizeram uma mistura,em que não há quem possa dizer que é mais puro e mais português do que qualquer outro”, acrescentou.

“Nós somos portugueses porque somos universais e somos universais porque somos portugueses”

No início da sua intervenção, o Presidente da República referiu que antigamente em Lagos “se somavam os estaleiros das naus do futuro e o mercado dos escravos” e agora se cruzam “emigrantes regressados à pátria conjuntamente com residentes europeus, das Américas, das Áfricas e das Ásias”.

Marcelo Rebelo de Sousa retratou o passado de Portugal como composto por guerras perdidas e vencidas, independências perdidas e recuperadas, epopeias, acertos e erros.

“[Há que recordar] o que delas soubemos acertar, aprender, converter em futuro nosso e da humanidade, mas também o que errámos, o que desperdiçámos, o que não fizemos em continentes e oceanos”, disse.

“Tudo isto e muito mais definiu o que somos:experientes, resistentes, criativos, heróis nos momentos certos, capazes de falar línguas,de entender climas e usos, de conviver com todos, de fazer construindo dia a dia pontes”, considerou, concluindo: “Nós somos portugueses porque somos universais e somos universais porque somos portugueses”.

“Temos o dever de nos recriar e cuidar melhor da nossa gente”

O Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, defendeu ainda que há o dever de recriar Portugal, que está num novo ciclo da sua História, e de cuidar melhor sobretudo dos mais pobres.

“Este recriar Portugal é a nossa obrigação primeira neste novo ciclo da nossa História,50 anos depois de termos chegado à democracia e à liberdade”, declarouo chefe de Estado, na cerimónia militar comemorativa do 10 de Junho, em Lagos, no distrito de Faro.

A última intervenção de Marcelo Rebelo de Sousa como Presidente da República no Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas, durou cerca de 10 minutos.

“Mas recordar é também recriar. Temos o dever de nos recriar, de nos ultrapassar, cuidar melhor da nossa gente, para que sejamais numerosa, mais educada, mais atraída a ficar nesta pátria feita de um retânguloe dois arquipélagos, se quiser ficar, ou a partir para voltar, e nunca perder a saudade da terra, se quiser partir”, defendeu, em seguida.

Segundo o Presidente da República, é preciso “cuidar mais do que puder e dever ser feito, produzido, inovado, investido, exportadoe sobretudo proporcionado a quem é nela a viver”.

“Cuidar dos que já ficaram para trás ou estão a ficar. E são sempre entre dois e três milhões, e são muitos há muito tempo, regime após regime, situação após situação, intoleravelmente são muitos, são de mais”, prosseguiu, condenando a pobreza que persiste no país.

O chefe de Estado e comandante supremo das Forças Armadas apelou também a que se cuide dos emigrantes portugueses, “compatriotas que todos os dias criam Portugal por todo o mundo”, e “do mar, dos oceanos”.

“[Há que] cuidar da fraternidade com os povos e os estados que como nós falam portuguêse fazem do português uma grande língua mundial. Cuidar da nossa pertença na Europa, unida, aberta, que acredita em valores humanos, dedignidade, respeito pelas pessoas, seus direitos e deveres, sua pluralidade de culturae de vida”, acrescentou.

Lídia Jorge alerta contra loucos no poder e fúria revisionista

A escritora Lídia Jorge alertou hoje contra a possibilidade de loucos atingirem o poder e contra “a fúria revisionista que assalta pelos extremos”, num discurso em que condenou o racismo, a escravatura e a cultura da mediocridade.

Lídia Jorge, conselheira de Estado falava enquanto presidente da Comissão Organizadora das Comemorações do 10 de Junho, em Lagos, num discurso que antecedeu o do chefe de Estado, Marcelo Rebelo de Sousa.

Na sua intervenção, com cerca de 30 minutos, citou Shakespeare, Camões e Cervantes, “três autores perceberam bem que, em dado momento, é possível que figuras enlouquecidas, emergidas do campo da psicopatologia, assaltem o poder e subvertam todas as regras da boa convivência”.

“O poder demente, aliado ao triunfalismo tecnológico, faz que a cada dia, a cada manhã, ao irmos ao encontro das notícias da noite, sintamos como a terra é disputada. E os cidadãos são apenas público que assiste a espetáculos em ecrãs de bolso. Por alguma razão, os cidadãos hoje regrediram à subtil designação de seguidores e os seus ídolos são fantasmas”, indicou.

Depois, numa crítica ao racismo, a escritora referiu que “em pleno século XVII cerca de 10% da população portuguesa teria origem africana – população que os portugueses tinham trazido arrastados”.

“O que significa que por aqui ninguém tem sangue puro e a falácia da ascendência única não tem correspondência com a realidade, cada um de nós é uma soma do nativo e do migrante, do europeu e do africano, do branco, do negro e de todas as outras cores humanas. Somos descendentes do escravo e do senhor que o escravizou”, declarou.

Neste contexto, a conselheira de Estado criticou “a fúria revisionista que assalta pelos extremos nos dias de hoje um pouco por toda a parte”, um revisionismo que coloca em causa “os fundamentos institucionais científicos, éticos, políticos”.

“O princípio da exemplaridade – essa conduta que fazia com que o rei devesse ser o mais digno entre dignos – está a ser subvertido pela cultura digital. O escolhido passou a ser o menos exemplar, o menos preparado, o menos moderado, o que mais ofende”, apontou

Numa alusão ao Presidente norte-americano, referiu que “o chefe de Estado de uma grande potência, durante um comício, disse adoro-vos, adoro os pouco instruídos”.

“E os pouco instruídos aplaudiram. Pergunto pois qual é o conceito hoje em dia de ser humano, como proteger esse valor que até há pouco funcionava e não funciona mais”, completou.

com Lusa