Hey, hey, hey! Está alguém a levar a taça!

Calma. Desta vez, não há nada a temer. Ao verem Kim Little e Leah Williamson colocar-lhe as mãos em cima para a levantar, os mais traumatizados terão pensado que o troféu estava de novo a ser levado contra a sua própria vontade ou contra a vontade daqueles para quem o mérito transferiu o direito de o mudar de lugar.

Mais do que ninguém, Arsenal e Barcelona percebiam as intenções dos larápios que a tentaram usurpar nas vésperas da final da Liga dos Campeões. A verdade é que à equipa derrotada pouco importava o prémio, mas a quem ganhou ia fazer muita falta uma prova do feito glorioso alcançado no Estádio de Alvalade. De facto, seria uma pena que o Arsenal tivesse superado Adamastor e não tivesse nada que dissesse que o fez.

Passaram 11 anos desde que Lisboa recebeu a final da Liga dos Campeões pela última vez num Estádio do Restelo cheio de cadeiras vazias quase incomodadas por terem mulheres a jogar futebol nos seus aposentos. Desta vez, circular pelo centro de Lisboa no dia da final da Liga dos Campeões é ser abalroado por uma maré de gente que fez os edifícios da baixa assustarem-se até perceberem que não regressámos a 1755.

A culpa do movimento de massas em que o futebol feminino se tornou é do Barcelona, das suas conquistas e da graciosidade do seu futebol. Nas últimas seis finais da Liga dos Campeões, as catalãs estiveram em cinco e ganharam três. Uma tentativa de intrometimento em tamanho ciclo é um ato de coragem e daí que a perspicácia do Arsenal, humilde para saber o que podia e não podia fazer, tenha sido assinalável.

Angel Martinez - UEFA

Kika Nazareth ajudou no que conseguiu, o que, nesta final, devido a lesão, não foi nada. Antes do aquecimento, recebeu um abraço apertado de Aitana Bonmatí em forma de agradecimento pelos seis jogos, três golos e três assistências que somou na competição. Não a terá consolado o suficiente. Perder a hipótese de jogar uma final da Liga dos Campeões em casa é uma ferida que não sara.

Mas como gente para jogar futebol de pantufas calçadas foi coisa que abundou, Mapi León, de camisola por dentro dos calções, em modo general tatuada até ao pescoço, pisava a bola com o pé esquerdo que numa outra equipa não tão saturada de talento pertenceria a uma número dez. As médias interiores, o baú de magia do Barça, eram o alvo preferencial. Normalmente, a Aitana Bonmatí não lhe faltam respostas para os problemas, mas o equilíbrio de forças com Mariona Caldentey neutralizou o floreado da Bola de Ouro.

O Arsenal demorou 20 minutos a superar os dilemas emocionais de uma final. Depois, superou os táticos, colocando Caitlin Foord, Frida Maanum e Chloe Kelly a circularem nas três posições por trás de Alessia Russo. Os pesadelos físicos - o que sofreu a compleição maneira de Ona Batlle - impostos ao Barcelona fizeram as inglesas tornarem-se mais altivas.

Frida Maanum borbulhou num duelo de nórdicas com Fridolina Rolfö. O desejo de cruzar equivocou Irene Paredes, que marcou na própria baliza. A desmarcação ligeiramente antecipada da norueguesa levou à anulação do golo. Insatisfeita, Maanum rematou de maneira descomplexada e quase surpreendia Cata Coll. Juntando neste iogurte o remate no centro da área de Kim Little, uma instituição do Arsenal que chegou a conviver com as jogadoras que ganharam a Liga dos Campeões em 2007 pela equipa londrina, não era surpreendente que o golo tivesse de facto aparecido.

Se Caroline Graham Hansen fosse responsável pela eletricidade, a Península Ibérica nunca teria sofrido um apagão. A única jogadora do Barcelona que parece gostar de jogar à largura foi batida pela homóloga do lado esquerdo, Clàudia Pina, a mais influente jogadora do emblema culé. Salvou o Arsenal a elegância defensiva de Leah Williamson que mesmo dentro da própria área sobreviveu aos duelo diretos.


David Price

Mais demonstrativo do que se tornou o jogo para o Arsenal na segunda parte foi o momento em que Maanum e Katie McCabe fizeram a equipa médica revezar-se para tratar da incapacidade das duas jogadoras caídas no relvado em simultâneo. Era oficial: o Barcelona entrou naquele nível a que só as jogadoras catalãs conseguem chegar (devia era ter aguentado lá mais tempo). Clàudia Pina chutou à barra e Ewa Pajor começava a intervir com maior vigor. Ona Batlle também arriscava remates cruzados com valentia.

Renascido das cinzas, o Arsenal confiou que no ataque tinha quem galgasse os metros que distanciavam a equipa da baliza de Cata Coll. E fez muito bem. Alessia Russo superou Mapi León e correu meio-campo até rematar para defesa da guarda-redes. E mais: Renée Slegers tinha ainda no banco outra força da natureza como Stina Blackstenius.

Mariona Caldentey passou dez anos no Barcelona antes de rumar ao Arsenal no início desta temporada. Na apresentação das equipas foi mais aplaudida do que muitas das jogadoras blaugrana pelos adeptos que sabem o que vale a multifacetada centrocampista. Numa fase em que um lance bem-sucedido daria poucas hipóteses ao Barcelona para reagir, Mariona pausou o jogo num canto que recusou despejar na área, encontrou Beth Mead e esta viu o remate transformar-se numa assistência. Stina Blackstenius agarrou na bola inesperada que sobrou daquele lance e marcou o golo da vitória.

BSR Agency

Se o futebol feminino é um fenómeno, o Barcelona é o líder do movimento. Algo que passaria despercebido na avaliação serviu para lhes agravar a ideia de que estavam a viver um mau momento. Porém, convenhamos, quem é que, na meia-final, ganharia dois jogos consecutivos por 4-1 ao Chelsea, o íman de talentos e dominador em Inglaterra, estando menorizado? No entanto, efetivamente, algo se passava. O antes indestrutível Barcelona estilhaçou-se em Lisboa e mostrou que as dinastias não duram para sempre.