
A três horas e meia sudeste de Díli -- em Timor-Leste é mais fácil medir as distâncias das viagens em tempo --, Soibada está rodeada de montanhas, e é acessível, nos últimos quilómetros, por uma estrada de terras, pedras e buracos.
Ramos-Horta chegou mais cedo, pediu uma 'pop mie' (a viciante massa instantânea indonésia) no pequeno Café Ak'klas e sentou-se a conversar, a recordar histórias das peripécias que passou com os colegas, incluindo Rogério Lobato, que por aqui nasceu.
"Alguns dizem que nasci em Natarbora, aqui perto. Mas isso não é verdade. Nasci em Díli. Vim para aqui depois e aqui fiz o meu ABC, e até à quarta classe", explica Ramos-Horta
Esteve sete anos no Colégio Masculino Nuno Alvares Pereira, a receber instrução de padres e mestres religiosos, a brincar e a aprender as serras de Portugal -- "de Timor ensinavam só sobre o Ramelau porque era a montanha mais alta do Império".
"Aqui não havia nada. Era só o colégio", conta à Lusa.
"Durante anos e anos andava sempre a pé ou a cavalo. Nas férias, durante anos e anos, íamos a Laclubar ou Barrique, até Manatuto. Dois dias e uma noite de caminho. E depois visitar os primos em Díli onde chegar era uma aventura. Nessa altura não havia muito, mas ficávamos impressionados com o movimento na capital", recorda.
O comício, ou mini-campanha que está marcado para daqui a pouco, é o que menos importa nesta viagem ao passado, à juventude de José Ramos-Horta, na escola onde, com dois cocos atados à cintura a fazer de boia, aprendeu a nadar.
"Quando aqui voltei, 40 anos depois, perguntei pela piscina. Apontaram-ma e eu fiquei a pensar: é mesmo pequena. Na altura parecia enorme, tudo parecia grande", explica à Lusa enquanto caminha pelo recinto.
O isolamento da zona, ainda hoje, faz imaginar como seria no início do século 20 quando os primeiros padres para aqui vieram e nem sequer uma comunidade aqui existia.
Além de uma mão cheia de casas e das estruturas que sobram do antigo Colégio Masculino Nuno Alvares Pereira, pouco continua a haver por aqui. Os edifícios sentem as marcas da idade, telhados caídos, as vigas podres sustentadas aqui e ali por paus de bambu, o solo cheio de lixo que foi caindo do teto, ao compasso do tempo.
Num deles -- "ali foi um dos meus dormitórios", explica -- está um objeto cuja origem parece difícil de explicar neste contexto, uma balança, antiga, das industriais, o seu braço vermelho a ser a única cor na sala.
No exterior, no chão, um sino de ferro esverdeado, calado há muitos anos, mas que no passado chamou os 400 alunos aqui internados.
"Os dominicanos vieram de Luca para Lacluta e daí dirigiram-se para Soibada e estabeleceram em Macloc e depois daí mudaram-se para aqui. Isto tem mais de 100 anos, a igreja foi construída em 1910", recorda Rogério Lobato.
Neste interior montanhoso de Timor-Leste, vivia-se entre o misticismo tradicional dos velhos liurais, o poder católico e o poder colonial.
"Nuno Alvares, herói soldado. Grande é o teu ideal. Repete a história o brado, por Deus e Portugal", rezava a primeira estrofe do hino do antigo colégio. "Soibada sem temer, junto ao pendão teu, cumpriu até morrer, sublime é o nome teu", continuava.
Questões que se fundiam no antigo colégio, onde muito era o Portugal da altura, desde o "Gato das Botas", o primeiro livro escolar de Ramos-Horta, até ao campo de futebol onde se fazia a "formatura da Mocidade Portuguesa".
"O Gato das Botas foi escrito por um senhor que se chamava Janeiro Acabado. Eu brincava e dizia aos meus colegas que era quando a escola acabava, em janeiro", disse.
Estas são terras de gente que fala habu e tétum terik, onde as memórias recordam o mestre Manuel Osório, que "dava cada porrada" aos alunos, e ainda a mandioca seca que passava de mão em mão em jeito de punição até à formatura de final de dia.
"Quem era castigado levava com a mandioca seca. E depois quem a tinha castigava outro que fizesse qualquer coisa mal, ou falasse tétum, por exemplo. Quem ao fim do dia a tivesse na mão levava do mestre. Por isso se a tinha, tentava-a sempre passar".
"Tínhamos que nos confessar todos os dias. E tínhamos que inventar pecados. Eu dizia que me tinha portado mal, mesmo sem conseguir ser específico", afirmou.
Desce-se um pouco do recinto principal, passa-se por uma casa pobre com uma bandeira parcialmente desfiada da Fretilin e depois ao lado da casa onde nasceu Rogério Lobato -- e de que agora sobram só os alicerces.
"Eu nasci aqui mesmo. E deste lado viviam os Osórios, que eram meus padrinhos de batismo. A comunidade continua a ser a família originária", explica Rogério Lobato.
Avança-se mais um pouco, sobe-se um pequeno monte e ali está uma tenda improvisada com um toldo azul, uma pequena mesa, coberta com toalha de renda branca e uma moldura com a foto de Nicolau Lobato.
Atrás da moldura, na mesa, dois pequenos cestos para a cerimónia tradicional: num está tabaco importado da vizinha indonésia e um isqueiro, no outro areca, cal e folhas de malus, uma das plantas maiores de Timor-Leste, a dar proteção a tudo.
"É muito emocional voltar a este lugar onde Nicolau Lobato nasceu e cresceu. Eu era mais novo, como o Rogério, e ele era mais velho. Quando jogávamos à bola, a bola era uma toranja pequena que amachucamos até ficar mole", conta enquanto caminha.
"Mas já na altura quando o Nicolau aparecia ficávamos todos quietos, já tinha essa presença muito natural de líder, mesmo ainda jovem. Parávamos e ficávamos a olhar para ele", disse.
Ramos-Horta baixa a cabeça em homenagem perante a moldura, ouve as boas-vindas do tio de Nicolau, José Feliz Lobato, e depois mete um pouco de malus na boca, uma proteção para o que falta até à segunda volta das presidenciais.
ASP // SB
Lusa/Fim