Uma das perturbações da personalidade de que se fala no livro é a borderline. Em que consiste?

A perturbação da personalidade borderline (PPB) é caracterizada por um padrão generalizado de instabilidade e hipersensibilidade nos relacionamentos interpessoais, assim como na autoimagem, flutuações extremas de humor e impulsividade. Não existindo números sobre a realidade portuguesa, estima-se que haja 2% de casos de PPB, em Portugal, ou seja, 200 mil afetados por uma condição que os impede, sem o tratamento adequado, de ter uma vida familiar, laboral e social dentro dos parâmetros normais.

É uma questão de saúde pública se se tiver em conta os que também são afetados por esta condição, nomeadamente os familiares. Nalgumas situações até podem ter uma vida considerada normal, como no emprego, mas no ambiente das relações de proximidade, tudo piora. Não toleram estar sozinhos e fazem tudo para evitar o abandono, o que dá origem a conflitos. Pode haver também tentativas de suicídio.

Em suma, quando acham que estão a ser abandonados ou negligenciados – mesmo que isso não corresponda à realidade – sentem um medo intenso e raiva, podendo entrar em pânico ou ficar furiosos. Esses pacientes tendem também a mudar o ponto de vista que têm de outras pessoas de forma abrupta e dramática, podendo a raiva exprimir-se com um sarcasmo cortante, amargura e gestos impulsivos, que são seguidos de vergonha e culpa. Nesses casos, sentem-se “maus”.

Tem-se dedicado muito à sensibilização e à formação na área da PPB. Que feedback tem tido ao longo destes anos? Nota que existe mais informação e menos estigma?

Em relação à perturbação borderline, nomeadamente após a publicação do livro “Reféns das próprias emoções”, há 4 anos, passei a ter uma avalanche de pedidos de ajuda, não apenas de pacientes mas também de muitos familiares. As pessoas sentiram-se compreendidas pela forma como encaro esta perturbação. Muito dificilmente consigo dar resposta a todos, mas a aceitação do livro foi muito positiva, porque sentiam falta de falar com alguém que as pudesse ajudar. Relativamente aos profissionais de saúde, também se nota uma diminuição do estigma.

“O outro componente é a compulsividade, ou seja, torna-se um vício: quando não se mente, fica irritado tal como quando falta a droga ao toxicodependente”

Neste livro também fala da mentira patológica. Em que consiste?

A mentira patológica consiste numa profusão de mentiras ao longo da vida. O ser humano mente desde que começa a falar. Todos mentimos, sendo a maior parte das vezes algo inofensivo. Mas na mentira patológica há mais dois critérios de diagnóstico, além da profusão de mentiras. Um deles é a impulsividade. Mesmo quando são confrontados, irão voltar a mentir para esconder a primeira mentira. Como é devastador dizer que, de facto, se mentiu, esse confronto com a verdade leva a reações, por vezes, mais agressivas, porque a pessoa se sente encurralada e em modo de sobrevivência. A mentira serve para proteger uma descompensação psicótica. Não se trata de esquizofrenia, mas de uma sensação de grande desorganização e angústia, que pode levar a sintomas psicóticos.

O outro componente é a compulsividade, ou seja, torna-se um vício: quando não se mente, fica irritado tal como quando falta a droga ao toxicodependente. A mentira acalma estes doentes. Há uma questão importante: há indivíduos que mentem muito, como os psicopatas, mas ao fazê-lo não têm remorsos; na mentira patológica, a pessoa sente-se mal, com culpa e vergonha. E com isto há muitos amigos que se afastam. No livro mostra-se, em pormenor, de forma simples – não técnica – todo o processo longo que levou a que a Maria C. deixasse de ter sintomas.

A outra doença, a mais grave de todas, é a síndrome de Münchausen , conhecida também como patologia fictícia. A pessoa inventa sintomas e pode chegar ao ponto de falsificar análises ou injetar substâncias para se sentir realmente mal e poder ser aceite no hospital. Quando se trata apenas de relatórios falsificados, os profissionais de saúde apercebem-se de que algo está errado. Perante isto, a pessoa foge do hospital e vai a outra unidade. Há quem injete insulina para ficar com hipoglicemias ou até mesmo entrar em coma insulínico. Há quem seja alvo de intervenções cirúrgicas! Tudo isto acontece para se ter atenção, carinho e afeto dos médicos. Inevitavelmente, tudo isto é estranho. Mas é uma doença. Temos de olhar sob outro ponto de vista: é muito triste que alguém queira sentir afeto e carinho e que recorra a estes estratagemas para o conseguir. Tem que estar em grande sofrimento.

Há muitos doentes com esta síndrome?

Desconhece-se a prevalência, porque as pessoas fogem e não aceitam tratamento. Existe, contudo, um estudo que estima que a prevalência ronde os 0,1%; um outro aponta para 0,3%-0,8%, mas não são estatísticas muito fidedignas. Apenas se sabe que são mais numerosos do que aquilo que se pensa; a maioria dos médicos já teve doentes com Münchausen , mas não os identificou. Mesmo quando o conseguem, não é fácil assumir o diagnóstico. Estas pessoas sofrem muito, e o risco de suicídio é de 30%-70%. Não é uma mania, mas um grande sofrimento.

“Outro fator essencial é que estas pessoas também tendem a fugir e a recusar o tratamento, porque estes comportamentos aliviam o sofrimento e não querem renunciar ao seu alívio, para continuarem a ser cuidadas”

Face a isso, também é preciso sensibilizar e formar a comunidade médica…

Sim, sem dúvida! Todos os médicos sabem que se não procurarmos determinadas doenças, não as vamos diagnosticar. Os médicos tendem a definir um quadro clínico com base em padrões e isso contribui para que não se vejam alguns pormenores que poderão ser muito relevantes e levar à suspeição desta síndrome. Quando não encontram uma explicação, pedem mais MCDT ou reencaminham para outro especialista e perdem o seu rasto. Não podem ajudar mais.

Outro fator essencial é que estas pessoas também tendem a fugir e a recusar o tratamento, porque estes comportamentos aliviam o sofrimento e não querem renunciar ao seu alívio, para continuarem a ser cuidadas. Não há outra forma de apaziguarem o seu sofrimento. Estes doentes são mal-interpretados pelos médicos, porque, obviamente, ninguém gosta de ser enganado, todavia, é importante estar atento e sensibilizado para esta condição clínica, que exige tratamento.

Sempre que suspeitarem e diagnosticarem este tipo de síndrome, devem mostrar compreensão e não abandonar a pessoa. No livro conto com o testemunho do internista Luís Campos, que tratou da Maria C. e que, ao se aperceber da síndrome, a encorajou a consultar um psiquiatra. O facto de ela ter percebido que aquele médico não a abandonava e que a compreendia, permitiu aceitar ajuda.

Qual o perfil dos doentes?

Muitas pessoas têm alguma doença associada como depressão major, mas a maioria dos casos de síndrome de Münchausen acontece quando a pessoa tem uma perturbação da personalidade, nomeadamente borderline. Neste caso, o prognóstico é pior, porque há um sofrimento e um vazio de abandono de base, assim como um sentimento de existência sem sentido.

Na esmagadora maioria dos casos, são pessoas que, pela primeira vez, tiveram uma experiência transcendente, quase espiritual, quando foram cuidadas por profissionais de saúde. O sentimento de que são importantes perdurou ao longo do tempo e acabou por se tornar uma adição, tal como as drogas. Verifica-se mesmo sintomas de privação, com descontrolo emocional, tal como acontece com o toxicodependente.

Maria João Garcia

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