"Preocupado com a situação e considerando que a imunidade parlamentar, princípio sagrado da ética republicana, é rodeada de especiais cuidados, insto as instâncias judiciais a agirem com celeridade, de modo a evitar que se instale a perceção de impunidade e continue o corrosivo desgaste das instituições democráticas", escreveu o chefe de Estado, numa mensagem publicada na sua conta na rede social Facebook.

Em causa está um recurso no Tribunal Constitucional (TC), envolvendo a detenção em julho de 2021 de Amadeu Oliveira -- arguido em três processos -, que continua por decidir.

"Há divergências entre os juristas e os atores políticos sobre as decisões do parlamento e sobre a constitucionalidade e a legalidade da prisão do deputado. Neste caso, e no ponto em que as coisas estão, a única forma de se resolver a questão é recorrer a todas as instâncias judiciais e, finalmente, ao Tribunal Constitucional. Tenho informações acerca dos recursos que os advogados têm interposto junto dos tribunais e do pedido de um grupo de deputados de fiscalização da constitucionalidade da Resolução da Assembleia Nacional que autoriza a prisão do deputado Amadeu Oliveira", acrescenta o Presidente.

"Temos de aguardar, nesta altura, pelas decisões dos Tribunais", afirmou ainda José Maria Neves, numa mensagem em que o próprio escreve, sobre o caso: "Como deve agir, no meu entendimento, o Presidente da República?".

E responde: "O Presidente da República vigia o cumprimento da Constituição da República e vela pelo normal funcionamento das instituições democráticas. É arbitro e não parte do jogo político. Não é Governo, mas também não é oposição nem claque. Deve agir com equilíbrio e serenidade, respeitando a ética republicana da separação de poderes".

O parlamento aprovou em 28 de julho, por maioria, em voto secreto e num processo inédito, a suspensão de mandato de deputado de Amadeu Oliveira, detido há um ano e suspeito de atentado contra o Estado.

Após dois dias de intenso debate no parlamento, os deputados votaram separadamente três propostas de resolução relativa à suspensão de mandato do deputado, advogado e crítico do sistema judiciário cabo-verdiano, pedida em três processos distintos pela Procuradoria-Geral da República (PGR), para o poder levar a julgamento.

Com 69 deputados presentes na sessão, cada proposta carecia de uma maioria de 35 votos para ser aprovada, tendo duas recebido 38 votos a favor e outra 39 votos favoráveis, enquanto que todas receberam 27 votos contra.

Um dos motivos centrais que dividiu o parlamento no debate que antecedeu a votação prendeu-se com dúvidas sobre a legalidade da decisão tomada há precisamente um ano pela comissão permanente da Assembleia Nacional de, a pedido da PGR, levantar a imunidade do deputado, que tinha sido eleito três meses antes nas listas da União Caboverdiana Independente e Democrática (UCID), para ser ouvido num desses processos, acabando por ficar em prisão preventiva.

Até agora, o parlamento continua a funcionar com apenas 71 deputados e não os 72 eleitos, como também recordou hoje o Presidente da República, na sua mensagem.

"Estamos a vir pedir ao parlamento a suspensão do mandato de um deputado que está preso. Temos um deputado preso há mais de um ano e vamos aqui confirmar um erro que provavelmente todo o sistema cometeu. Entendemos que este não é o caminho", afirmou no parlamento António Monteiro, deputado e ex-presidente da UCID, antes da votação das três propostas.

"Estamos a entregar um cidadão não à Justiça, mas ao poder judicial", disse.

Crítico do sistema de justiça do país e assumido autor da fuga do arquipélago de um homem condenado por homicídio, o também advogado foi detido em 18 de julho após ser ouvido naquele processo, um dos três votados. Dois dias depois, o Tribunal da Relação de Barlavento, na ilha de São Vicente, aplicou a prisão preventiva a Amadeu Oliveira, que foi eleito deputado em abril do ano passado nas listas da UCID, a terceira força política no parlamento, com quatro deputados.

Contudo, contrariamente ao previsto na lei, o deputado acabou por ficar em prisão preventiva desde então, sem despacho de pronúncia transitado em julgado - obrigatório para a detenção de um deputado fora de flagrante delito - o que levou, entretanto, um grupo de 15 deputados a avançar para o TC, requerendo um pedido de fiscalização abstrata sucessiva para analisar o caso.

"Estamos num Estado de Direito democrático. As pessoas não podem ser prejudicadas em situações de dúvida", afirmou Rui Semedo, presidente do Partido Africano da Independência de Cabo Verde (PAICV, oposição), antes da votação, anunciando que o partido -- cujos deputados também subscreveram o recurso - pretendia "aguardar a decisão" do TC.

Já o líder da bancada do Movimento para a Democracia (MpD, maioria), João Gomes, recordou que dois dos três processos em causa eram referentes a casos que aconteceram antes da eleição de Amadeu Oliveira como deputado (abril de 2021), um dos quais diz respeito à retoma do julgamento em que aquele é arguido e que se iniciou em 2019.

Daí que, sublinhou, tal como aconteceu com deputados do próprio partido, por se tratar de processos que "não estão relacionados com a função", o entendimento é que qualquer deputado "deve responder no tribunal".

Detido desde julho de 2021 na cadeia de Ribeirinha, em São Vicente, Amadeu Oliveira é acusado no processo mais mediático e ocorrido já após as eleições legislativas dos crimes de atentado contra o Estado de direito, perturbação do funcionamento de órgão constitucional e ofensa a pessoa coletiva, segundo a PGR.

Em causa estão várias acusações do deputado contra os juízes do Supremo Tribunal de Justiça (STJ) e a fuga do país do condenado inicialmente a 11 anos de prisão por homicídio -- pena depois revista para nove anos - de Arlindo Teixeira, em junho do ano passado, com destino a Lisboa, tendo depois seguido para França, onde está há vários anos emigrado.

Amadeu Oliveira assumiu publicamente, no parlamento, que planeou e concretizou a fuga do condenado, de quem era advogado de defesa, num caso que lhe valeu várias críticas públicas.

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