Há oito meses, a deslocada de 47 anos mostrou à reportagem da Lusa como é que 48 pessoas sobreviviam num espaço precário com duas divisões e um quintal, mas agora o número subiu para 56. 

"A situação continua porque recentemente atacaram na ilha de Matemo e eu tive de acolher [quem fugiu de lá] porque não há outra maneira", senão a solidariedade entre habitantes, explicou.

Matemo é uma das ilhas do arquipélago das Quirimbas, alguns quilómetros ao largo de Cabo Delgado, zona de paisagens paradisíacas (ilhas onde até já houve empreendimentos turísticos), mas sujeita à violência armada.

Os residentes fogem, deixando tudo para trás, e como em qualquer parte do mundo, a comida é a principal necessidade: "comemos de manhã um 'mata-bicho' (pequeno-almoço) e depois esperamos pelo jantar".

Esperar é uma forma de poupar comida: "se cozinhamos de dia, de noite não teremos o que comer e as crianças vão chorar", descreve, mostrando a cozinha vazia, sem panela ao lume.

Até chegar a noite, "engana-se o estômago com uma mandioca seca".

Yatima Tauabo, 54 anos, chefe de quarteirão, é uma das responsáveis pelo registo de deslocados e diz que há cheques mensais de 3.600 meticais (50 euros) por cada 10 pessoas deslocadas, num trabalho do governo local que envolve as autoridades dos bairros e agências humanitárias.

Os cheques dão acesso só a produtos alimentares em estabelecimentos identificados.

A casa de Maincha recebe apenas dois cheques para alimentar 56 pessoas e a chefe reconhece que devia receber, pelo menos, cinco.

Só que a ajuda não chega para todos e Tauabo aponta para outro ponto do bairro: "aquela casa tem pessoas de Meluco e uma idosa", todos ainda sem cheques, referiu, apelando às autoridades para que "continuem a ajudar" os deslocados, na esperança de lhes matar a fome.

Maincha fugiu de Macomia quando a vila sofreu o primeiro ataque em 2020 e vive "de favor" numa casa do bairro de Paquitequete, onde desembarca a maioria das famílias que fogem do conflito no norte e centro da província.

Tal como há oito meses, queixa-se da falta de redes mosquiteiras para evitar a picada que transmite a malária.

"Aqui tem rede, ali também, mas aqui já não tem", mostra no interior da casa, apontando os lugares onde dormem crianças e idosos, no chão.

Dos 56 deslocados, 10 são crianças em idade escolar, mas só há quatro uniformes para ir às aulas, como pedem as regras.

A partilha da mesma roupa faz parte das rotinas: "uma volta da escola, entrega logo o uniforme a outra, já que há diferenças nos horários e dias de estudo", disse Maincha, mostrando dois pares de uniformes num estendal, lavados com água de um vizinho, porque na sua casa o fornecimento foi cortado por falta de pagamento.

A única água odiada é a chuva da noite, porque a maioria dos 56 que partilham a casa tem de dormir no quintal, ao relento, por falta de espaço no interior.

Lá dentro, a prioridade foi dada aos mais novos e idosos, do lado de fora ninguém dorme como deve ser nas noites mais carregadas da época chuvosa (de outubro a abril), em que o quintal fica alagado.

"Não, não há espaço para todos ali dentro", conclui Maincha, que mesmo assim acolhe mais deslocados.

A organização Médicos Sem Fronteiras (MSF) disse no início do mês que Cabo Delgado viveu no final de janeiro um "novo pico de ataques e violência", que causou "mais uma vaga de milhares de pessoas deslocadas em apenas algumas semanas".

Segundo a Classificação Integrada de Segurança Alimentar seguida pelas entidades humanitárias, 1,3 milhões de pessoas enfrentam insegurança alimentar nas províncias de Cabo Delgado, Nampula, Niassa e Zambézia, como acontece na casa de Maincha.

Desde julho de 2021, uma ofensiva das tropas governamentais com apoio do Ruanda a que se juntou depois a Comunidade do Desenvolvimento da África Austral (SADC) permitiu o aumento da segurança, recuperando várias zonas onde havia a presença dos rebeldes, mas os ataques continuam em zonas dispersas da província e de regiões vizinhas.

O conflito já provocou mais de 3.100 mortes, segundo o projeto de registo de conflitos ACLED, e mais de 859 mil deslocados, de acordo com as autoridades moçambicanas.

A província de Cabo Delgado é rica em gás natural, mas, aterrorizada desde 2017, por rebeldes armados, sendo alguns ataques reclamados pelo grupo extremista Estado Islâmico.

RYCE // VM

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