Tenho saudades da noite. Este desporto olímpico. Um triatlo de sobrevivência entre pré-noite, noite e pós-noite. A minha especialidade era a pré-noite.
Só Ele (Deus) sabe a adrenalina que eu sentia quando alguém dizia: "Eu nunca apanhei os meus pais a fazer amor." E eu ficava inerte até me perguntarem: "Tu não?!" e eu poder responder logo: "São separados." Que brilharete.
A pré-noite era muitas vezes melhor que a noite. Porque a pré-noite é promessa, é potencial, é miragem. No fundo, é tudo e não é absolutamente nada.
É um ritual de dança entre homens que tentam perceber que rapariga tem menos probabilidade de considerar assédio quando invariavelmente lhe espetarem com um kizomba recreativo à traição, pelas costas, na discoteca. E vão atribuindo goles… A doce atribuição de goles.
"Distribui dois goles a um jogador à tua escolha.". Pode ser a Madalena.
A Madalena representa aqui um tipo preferido de alvo para o “pré-noiter”: frequentemente uma amiga ou prima da dona da casa que ainda não tinha estado em contacto com o grupo, vem com ilusões de integração social e inseguranças que podem ser exploradas. Mais importante, não goza da proteção das girls porque não faz parte do núcleo, até porque – sussurra-se nos corredores – nem sequer tem dois apelidos…
A pré-noite é a melhor parte da noite. Só que a pré-noite acaba sempre interrompida pelo fatídico Uber para a baixa. Que é um Uber que tem de ser tratado com pinças, porque 90% das vezes acaba com o interior do veículo sóbrio assim que chega à porta da discoteca.
O Uber perfeito no pós-pré-noite é um Uber que não interage, mas deixa pôr a música nas alturas. É um Uber que respeita a vibe do habitáculo e faz os possíveis para a proteger a todo o custo. E, convenhamos, nunca pode ser um Renault Zoe branco. Infelizmente, este é um Uber que aparece como o Porto tem ganho campeonatos: uma vez nos últimos cinco anos. A maior parte das vezes, como sabemos, lá vem o Zoe, com um condutor cuja etnia não vou concretizar, mas que se o caracterizássemos de acordo com estereótipos nos quais não me revejo seria um forte candidato à exploração de uma loja de cartões SIM, e onde o volume da música num poderá ser adequado à energia com que nele entramos, porque o motorista está inevitavelmente com um auricular a receber informações da régie.
Chegados à noite propriamente dita, entramos num universo que sai completamente do nosso controlo. É contraintuitivo, mas a qualidade de uma noite está inteiramente dependente de terceiros. Começa logo à porta da discoteca. Primeiro há sempre um gajo no grupo que tem a mania que tirou um mestrado em metodologia de discoteca, e monta o 4-3-3 ofensivo numa mistura entre pastor de ovelhas e Rúben Amorim. “Meninas à frente. Gajos maxilar cerrado. Malta de calções vão para casa refletir nas vossas decisões.”
Temos também o homem que decide quem entra e por que ordem na discoteca. Acho que não há ser que eu mais despreze. Sempre de sobretudo, e possivelmente a interagir com o Uber do Renault Zoe através do mesmo auricular, é o ditador dos dias de hoje. Talvez eu padeça de uma condição que é ser mesmo muito pouco atraente, mas para mim hoje em dia é mais fácil ser atendido nas urgências do SNS do que numa discoteca. E depois a arbitrariedade com que são definidos os preços, ao arrepio de todas as leis que a economia nos ensina. Porque, e fala-se pouco disto, as discotecas não podem barrar pessoas descaradamente, porque é considerado discriminatório. O que acontece é que, de acordo com o aspeto/roupa da pessoa, os preços vão sendo fixados de forma a desincentivar o consumidor. No outro dia vi um sem-abrigo a tentar entrar numa discoteca para ir beber água, pediram-lhe seis mil euros.
Quando acabo de calcular a TAEG e consigo entrar, concretizo um dos meus sonhos que era ir sair à noite dentro de uma lata da Bom Petisco. A noite está a chegar ao fim.
Aproxima-se um dos momentos mais críticos da jornada: o pós-noite. Uma vez mais, o pós-noite está inteiramente dependente das vontades de terceiros. E aqui devo enaltecer a classe das mulheres. As mulheres saem da noite sem ninguém se aperceber. Não ficam à espera nem dois minutos à porta, não perdem tempo, não fumam mais um Iqos. É cirúrgico. Acabou a noite, vão para casa ter uma conversa com as bolas de algodão e a água micelar.
Os homens não. Os homens deixam-se ficar. Os homens sugerem ir comer qualquer coisa leve, como uma bifana ou um javali inteiro. Os homens tentam incessantemente implementar a ideia de um after no cérebro de alguém, como se o domingo em coma induzido não fosse after suficiente.
E, fatidicamente, quando a pergunta é: «quem chama o uber para casa?», a resposta é sempre uma, independentemente de onde estivermos: vamos a pé.
«Ó Guedes, mas estamos em Espanha.».
«Está bem, então pede tu e depois a malta faz-te mbway.».
Pensando melhor, vamos a pé.
Comediante Estagiário