A dramática vaga de emigração portuguesa há mais de 60 anos representou uma página negra da nossa História que não podemos esquecer.

Muitos de nós ainda recordarão o que foi a tremenda onda de emigração portuguesa nos anos 60 e início dos anos 70 . Compatriotas nossos, contemporâneos dos nossos pais e avós, mulheres e homens cristãos partiram para uma Europa carecida de mão-de-obra para ajudar a reerguer sociedades ainda amputadas de meios e recursos para se recompor e desenvolver depois da devastação sofrida às mãos das tropas alemãs de 1939 a 1945.

Estimativas sugerem que nos anos 60 emigraram legalmente cerca de 450 mil portugueses e na primeira metade da década de 70 mais de 300 mil. À onda de emigração legal é preciso juntar a clandestina,  muito mais comum e que se estima tenha representado mais de 60% da emigração total. Falamos assim de quase dois milhões de portugueses que abandonaram o país, mais de 20% da população. Ao lado deste número, a mobilização militar para as colónias parecia ínfima — cerca de 6.500 homens no primeiro ano aumentando até atingir um contingente de 65 000 no final da guerra – mas eram mais homens economicamente improdutivos, longe de casa e sob risco de morte.

O que levou ao fenómeno de emigração português tão expressivo e tão longo no tempo? A explicação está nas adversidades do dia-a-dia da grande maioria dos portugueses e da falta de perspetivas de melhoria no futuro. Partiram por isso à procura de um nível de vida decente proporcionado por melhores salários, um ambiente livre do regime ditatorial vigente e a fuga à mobilização para a guerra colonial.

Emigrantes portugueses no Canadá
Emigrantes portugueses no Canadá

Os relatos de felicidade dos primeiros emigrantes com a sua nova vida criaram um efeito de bola de neve atraindo cada vez mais portugueses a França, Alemanha, Suíça ou Luxemburgo. Nascem assim expressivas comunidades portuguesas em várias cidades, formadas por famílias inteiras que criam raízes e cujos filhos já são mais franceses ou suíços do que portugueses. Os sinais da presença portuguesa ainda se mantêm sólidos e expressivos – no Luxemburgo, por exemplo, falar português ou francês com um motorista de táxi, um rececionista de hotel, um empregado de restaurante ou uma comerciante é igual, e no fim dum dia de trabalho na cidade sentimo-nos em casa.

Mas nem tudo foram rosas — bem pelo contrário. Tomemos as palavras de Jorge M. Cabral in Portugal d'Antigamente...

“Entre 1958 e 1974, cerca de um milhão de portugueses instalam-se em França, dispostos a trabalhar em tudo o que lhes aparecesse. As formas brutais da sua exploração começam em Portugal, com as redes que os transportam até à fronteira, e não raro os abandonam pelo caminho. Muitos portugueses morrem neste percurso. E já no destino, sobretudo em França, são vítimas de todo o tipo de discriminações no trabalho, no alojamento e nas mais pequenas coisas do dia-a-dia, uma humilhação que a custo suportam. Muito poucos esperam enriquecer, mas todos esperam  conseguirem a vida digna que lhes é recusada na sua própria terra.”

Vista de Portugal, trata-se de uma verdadeira vaga, em grande parte clandestina, contra a qual todas as leis da altura se revelam ineficazes. Em poucos anos despovoam-se regiões inteiras e abrem-se profundas ruturas na suas estruturas económicas, sociais e culturais. E como seria de esperar, nada voltou a ser como dantes na vida dos que partiram e na vida dos que ficaram.

A dramática vaga de emigração portuguesa há mais de 60 anos representou uma página negra da nossa História, que não podemos esquecer, e a memória do sofrimento dos nossos antepassados é honrada pela forma como tratamos os nossos imigrantes.

A memória do sofrimento dos emigrantes portugueses sensibilizou a sociedade da metrópole tornando-a ainda mais tolerante e amigável e facilitando o acolhimento de milhares de imigrantes durante décadas, mas sempre de forma saudável com taxas de imigração perfeitamente ao nível da média europeia.

A natureza acolhedora das pessoas, a razoabilidade do custo de vida e as oportunidades de emprego começaram a atrair imigrantes para Portugal de forma mais expressiva a partir do final dos anos 80, com origem maioritária nos países de língua portuguesa, particularmente das antigas colónias africanas (Angola, Moçambique, Cabo Verde, Guiné-Bissau) e do Brasil. Em 2015, 44% dos estrangeiros em Portugal ainda eram oriundos da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP).

Na década de 2000, a origem diversifica-se com a chegada de imigrantes da Europa de Leste (em particular Ucrânia, Roménia e Rússia) e de países asiáticos budistas (como a Índia, o Nepal ou a China). A expressão desta vaga é demonstrada pelo caso da Ucrânia que se torna a terceira maior origem de imigrantes em 2015. E é nos últimos cinco anos que se dá a explosão de entrada de nacionais das comunidades do sul da Ásia, em particular dos países muçulmanos como o Bangladesh e o Paquistão) e uma retoma do crescimento de imigrantes brasileiros, que formam hoje em dia a maior comunidade internacional a residir no nosso país.

A par da generalidade dos países europeus, a evolução da população estrangeira em Portugal explode nos últimos oito anos: de 422 mil em 2017, para um milhão em 2020 e 1,6 milhões em 2024 – uma taxa de 15% da população residente. ainda assim alinhada com a média de 14% verificada no total da UE. Para compreender a razoablidade do caso português, vale referir que Luxemburgo e Malta lideram na taxa de imigrantes com 51% e 30,8% respetivamente.

Conclusão: temos imigrantes a mais, temos as fronteiras excessivamente abertas, somos uns tolos permissivos? Claro que não, e quem disser o contrário é um demagogo que desconhece a realidade dos números, podendo sim viajar para pregar em Malta ou no Luxemburgo.

Não obstante, está a levantar-se na sociedade portuguesa uma onda de islamofobia que coloca em perigo os nossos valores básicos de acolhimento e integração de imigrantes e que por isso tem de ser vigorosamente combatida e eliminada.

Se a sociedade portuguesa tem qualidades, a tolerância, a simpatia, o conforto e sentido de segurança no convívio com pessoas de outras raças e credos são seguramente das mais fortes e distintivas. Somos o melhor destino turístico do mundo porque sabemos receber e valorizar o nosso património natural e histórico – e é naturalmente a mesma coisa com os imigrantes. Mas tudo na vida evolui e a vaga de entrada de muçulmanos nos últimos cinco anos está a fazer uma mossa muito clara nestes nossos valores seculares. Uma mossa inadmissível que temos de travar e depois eliminar. Vamos a alguns casos paradigmáticos.

Temos assistido ultimamente em Lisboa a episódios de claríssima islamofobia das mais variadas origens e cada vez mais frequentes, tendo muitos deles o terrível efeito de projetar a toda a população nacional uma imagem denegrida de desonestidade, sujidade e descaracterização urbana quando não de crimes violentos contra mulheres.

Assiste-se hoje a um crescente e generalizado sentimento de repulsa pelos  imigrantes originários do Paquistão, do Bangladesh, da Índia, do Nepal, do Sri Lanka e doutros países asiáticos, na sua esmagadora maioria muçulmanos. Uma repulsa ainda suave mas que tem efeitos práticos. Evitam-se estas pessoas na rua ou nos transportes públicos, cancela-se um Uber se o motorista parecer asiático (a UBER não obriga os seus motoristas a falar português, apenas inglês) e procuramos sempre uma alternativa a comprar nos seus minimercados, "desarrumados e com mau odor".

Sempre na senda do sensacionalismo fácil em temas de grande alcance popular, alguns meios de comunicação veem uma nova presa e não perdem tempo a saltar sobre ela.  Foi o que aconteceu com a famigerada rusga na Rua do Benformoso, tão desnecessária como humilhante, com fotografias que fizeram manchetes que trouxeram à memória cenas da perseguição aos judeus no regime nazi nos anos 30.

Rusga do Benformoso abre ‘guerra’ entre bispos
Rusga do Benformoso abre ‘guerra’ entre bispos

Mas o ponto mais alto até agora foi a reportagem de investigação duma revista e dum canal de televisão na famosa Rua do Benformoso, transmitida há dias e que atingiu uma audiência média de 160,000 pessoas, um recorde para uma reportagem de investigação. Nesse programa, acabava por se passar ao público a imagem de que nenhum asiático era honesto e todos eram criminosos, efetivos ou em potência. Isto é um crime em si mesmo; não é de todo admissível atacar pessoas supondo razões não provadas ou pintando atividades normais e lícitas como perigosos crimes que a polícia, sempre presente nas “rusgas” da reportagem, vai agora tratar de provar que estes facínoras todos devem ser presos e se Deus quiser deportá-los ao bom estilo do presidente Trump (ele empresta os aviões).

Ao mesmo tempo, as manifestações e atos de protesto contra os imigrantes muçulmanos têm sido cada vez mais frequentes. Há uma semana, no dia 25 de Abril, o partido Ergue-te promoveu uma manifestação não autorizada em Lisboa a que se juntou o Grupo 1143. O confronto com manifestantes que festejavam o Dia da Liberdade foi inevitável e levou a cenas de agressão pouco comuns nas pacíficas ruas da capital, só travadas com a chegada da polícia. Os  líderes dos dois grupos nacionalistas foram detidos e quatro pessoas ficaram feridas.

Três detidos, quatro pessoas identificadas e dois polícias feridos em Lisboa
Três detidos, quatro pessoas identificadas e dois polícias feridos em Lisboa

A enorme cobertura televisiva desta manifestação e das declarações dos seus cabecilhas durante alguns dias não se pode dizer que tenha sido ilegítima, são notícias. Mas muitos espectadores “apanham” partes e a aversão aos muçulmanos que lentamente se cria no seu espírito acaba por ser reforçada. Alguma coisa se passou, não sei bem o que foi, mas sei que foi ali nas ruas dos muçulmanos; de certeza que deve ter que ver com eles outra vez; antes de virem para cá não havia este desassossego.”

Portugal já viveu na pele a discriminação social dos compatriotas que buscaram outras paragens. Será que esquecemos o que se passou com os nossos pais e avós e estamos a repetir com os asiáticos a vergonhosa misoginia que tanto sofrimento causou aos nossos antepassados?

A História deixa-nos ensinamentos e factos que são incontornáveis. Quando ouvirmos críticas aos imigrantes que vieram para Portugal, sobretudo os tão atacados asiáticos instalados na parte baixa da Mouraria e de Alfama, lembremo-nos dos dois milhões de compatriotas que fugiram duma ditadura, duma guerra e dum estado de pobreza. Tal como os asiáticos que chegaram a Portugal.

Os portugueses não foram respeitados nos países destino: recebiam os piores trabalhos, eram gozados (as piadas francesas sobre portugueses davam para encher um camião TIR), explorados e  trucidados pelo famoso espírito chauvinista francês. Mas aguentaram-se, tal como os asiáticos que chegaram a Portugal.

Os emigrantes portugueses eram pacíficos, trabalhadores, simpáticos e sérios, tal como os asiáticos que chegaram a Portugal.

Os portugueses não falavam a língua do país destino, mas foram aprendendo com os anos. Tal como os asiáticos que chegaram a Portugal estão a fazer aos poucos.

No final, a força e a resiliência dos nossos emigrantes é algo que não têm comparação, chegaram a uma nova terra e viram muitos compatriotas morrer pelo caminho. E com essa força pouparam e remeteram o dinheiro de volta a Portugal, oferecendo do seu suor um importante contributo para a economia. Tal como vai acontecer com os asiáticos que chegaram a Portugal.

É verdade que os muçulmanos nos incomodam porque o terrorismo na Europa vem de mãos muçulmanas, não são cristãos, não podem tocar num cão, vivem sob padrões restritivos ditados pelo Corão e alguns têm lojas de souvenirs que descaraterizam a paisagem urbana e escondem negócios paralelos sem os quais os recém-chegados talvez tivessem de voltar para trás. Mas são antipáticos? São desonestos? São criminosos? Não aceitam trabalhos que os portugueses recusam porque se ganha melhor no desemprego? Não são benéficos afinal para o nosso bem-estar? Não são um elemento útil à sociedade? Em suma, não precisamos deles?!

Há naturalmente muito a fazer — a regulação tem de ser fortalecida e a aculturação mais intensa com ações montadas e geridas pelo Estado, em particular no ensino da língua, da História e dos costumes sociais e condicionar vistos definitivos a esses conhecimentos, como é prática em tantos países. E acima de tudo temos de combater uma misoginia que é contrária aos valores de Portugal e respeitar o nosso legado histórico de cabeça levantada e sorriso nos lábios. Temos de parar com a islamofobia e quanto mais cedo mais fácil é... e as manifestações são sempre um contributo valioso.

Um apelo final: sejamos como os nossos melhores antepassados e vamos fortalecer a nossa sociedade eliminando os focos de islamofobia e estimulando o sentido de valor da diversidade.

Os imigrantes asiáticos não podem ser vistos como uma praga, como um mal que se abateu sobre nós. Queremos ser como os franceses eram para os emigrantes portugueses no tempo dos nossos pais e avós? Queremos ser nós os algozes de outros seres humanos fragilizados por uma vida de privação e sofrimento? Não, claro que não, e por isso temos de tratar qualquer imigrante trabalhador, sério e afável, determinado a integrar-se na nossa sociedade, com a simpatia, a tolerância e a solidariedade que qualquer ser humano nos merece – seja brasileiro, ucraniano, cabo-verdiano, angolano ou paquistanês ou bengali.

Oxalá cada um de nós, sobretudo aqueles 80% que são cristãos, ganhe consciência da vergonha de uma mentalidade misógina que nos faz recuar aos tempos de uma escravatura que foi das últimas a ser abolidas na Europa. E abraçar aquilo que são os valores mais profundos da sociedade portuguesa: o saber acolher, o querer ajudar, a tolerância, a simpatia e o gosto de conviver com pessoas de todas as raças e credos.

Empresário, Gestor e Consultor