Discute-se muito, e com razão, a carga fiscal no país. Portugal tem dos maiores impostos sobre os lucros da União Europeia, uma barreira à entrada de novas empresas no país, afastando oportunidades e mantendo incumbentes que melhor sabem navegar o complexo sistema fiscal com uma vantagem no mercado. Portugal tem um imposto sobre rendimentos cuja progressividade acelera ainda em níveis de rendimento que mal dão para ter uma vida independente, desincentivando aumentos salariais, alimentando a informalidade e os esquemas de remuneração extra-salariais. Se as notícias neste campo são más, há notícias piores ainda: a carga fiscal está longe de refletir o verdadeiro peso do Estado na economia. A esta carga fiscal devemos somar a burocracia.
A burocracia é um imposto escondido. Todos os anos pessoas e empresas despendem tempo e dinheiro (passe a redundância) para cumprir um conjunto de obrigações para com o Estado. Este tempo e dinheiro perdidos não entram nas contas do peso do Estado na economia, mas são um custo efetivo para as pessoas e as empresas. É tempo que as pessoas poderiam passar a trabalhar ou a descansar, e recursos que as empresas poderiam utilizar para fins produtivos.
A burocracia não é só um imposto: é o pior tipo de imposto. Enquanto os impostos normais servem para pagar por serviços públicos, este imposto escondido não se converte em receita para pagar por serviços públicos. No caso dos impostos, podemos sempre discutir se há mais ou menos desperdício, se o dinheiro é bem utilizado ou não, mas pelo menos uma parte desses impostos vai para serviços públicos. A burocracia não. É um imposto morto.
Para além do trabalho envolvido no cumprimento da burocracia em causa, existe um outro custo da burocracia: o custo trazido pelo tempo de espera. Cada dia que uma empresa tem de esperar para obter um licenciamento é um dia em que o dinheiro do investimento fica parado, é um dia que a empresa não está a funcionar, não está a angariar clientes e a obter receitas. Cada dia que uma pessoa passa à espera de um processo de licenciamento na construção de uma nova casa é mais um dia em que tem de pagar renda ou arrastar-se a viver em casa dos pais. A burocracia tem custos quase impossíveis de contabilizar, mas que somam ao peso que os impostos têm na economia.
Algumas burocracias têm, claro, um propósito de existir. Visam reduzir risco e olear a relação entre pessoas e Estado. Mas mesmo quando precisam de existir podem ser agilizadas. Um mesmo processo burocrático, com o mesmo propósito, pode exigir deslocações físicas a organismos públicos diferentes, tempos de espera e taxas de emissão de documentos, ou simplesmente ser cumprido com um clique numa aplicação móvel. Transformar uma burocracia de um processo moroso e imprevisível para um processo rápido e claro é o equivalente a baixar um imposto sobre as pessoas ou as empresas.
Por ter custos, é importante perceber as reais necessidades de alguns processos. Quase todos os processos burocráticos podem ser defendidos com base nalguma utilidade específica. Quase todos servem para precaver um qualquer risco. Mas sabendo que esses processos têm custos, é preciso sempre perceber se os supostos benefícios, se os riscos que protege, compensam esses custos. Lembro-me com um sorriso (e algumas gargalhadas) a discussão no Parlamento sobre o fim da obrigatoriedade de colar o selo em papel no para-brisas. O papel do seguro no para-brisas serviria noutros tempos para garantir às forças de autoridade e a outros condutores que o dono do automóvel tinha mesmo adquirido o seguro. Entretanto, a digitalização da base de dados já permite que qualquer agente de autoridade ou outro condutor obtenham a mesma informação colocando a matrícula num site da internet. Como a matrícula está bem mais visível do que aquele papel, o papel tornou-se inútil.
O custo desta burocracia era pequeno: alguns minutos para cada pessoa quando se lembrasse de ir buscar o papel ao correio e colá-lo no carro. Para alguns mais distraídos, como eu, o processo de se lembrarem de fazer esta pequena atividade poderia demorar meses, arriscando-se a uma multa numa operação STOP, mesmo tendo o seguro em dia. Não era certamente a burocracia mais custosa do nosso país, longe disso. Nem sequer sei se seria merecedora de uma discussão em plenário, como acabou por acontecer, mas lembro-me de colegas deputadas de outros partidos — que sei serem bem intencionadas e capazes — defenderem afincadamente a necessidade desse papel. E de facto, em circunstâncias extraordinárias, o papel pode fazer falta (imagine-se por exemplo que num acidente todo o carro arde exceto aquele cantinho do para-brisas, tornando-se a única fonte para garantir que o carro acidentado tinha seguro). Claro que este risco é de tal maneira pequeno que não justifica nem sequer aquele pequeno custo multiplicado por milhões de automóveis no país.
Desde que a obrigação cessou nunca foi noticiado um caso em que aquele papel tivesse feito falta. E mesmo que venham a acontecer alguns casos esporádicos, continuarão a não justificar a existência daquele processo. Os custos daquela burocracia por muito pequenos que fossem superavam os benefícios, que eram ainda mais minúsculos. Agora multipliquemos este exemplo por centenas ou milhares de outras exigências inúteis ou anacrónicas que se mantêm até hoje.
As pessoas perdem dias de vida todos os anos a trabalhar para o Estado, obrigadas a processos inúteis que não têm outro propósito que não suprimir falhas ou negligências da máquina estatal. O Estado existe para servir as pessoas, e não o contrário. Eliminar burocracias inúteis é um dos passos fundamentais para repor o equilíbrio.
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