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A Rússia jovem

Apesar de todas as diferenças de opinião que existem entre nós, é agradável sentir uma veia de esperança no futuro, algo que os nossos jovens geralmente não partilham.
A Rússia jovem
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Dizem que a juventude é a idade da inocência, das esperanças vãs e dos sonhos impossíveis. Os mais velhos, os adultos, em princípio maduros e calejados pela vida, acusam os adolescentes, um pouco à imagem da mulher experiente que encara o jovem virgem com desdém enquanto se insinua, de ignorância e virtudes e escrúpulos vãos que a idade encarregar-se-á de tratar de demolir. A minha vivência enquanto professor dessa faixa etária permite-me ter uma opinião diferente e mais benevolente para com os mais novos.

Certamente que a experiência nos dá realismo e pragmatismo, inclusivamente algum pessimismo quanto à humanidade e ao nosso futuro. Todavia, descartar por princípio as opiniões dos mais imberbes parece-me injusta e apressada. Se fizermos um exercício de memória, veremos que, por mais contrário que se tenha tornado o nosso pensamento global em relação ao do passado, teremos, com certeza, algum pendor político, estético ou religioso, que se manteve estável ao longo dos anos. Tal não é sinal de fraqueza nem de conservadorismo atarracado, ou tão pouco de coerência no carácter. Nas circunstâncias em que a vida se nos apresenta, umas negativas outras positivas, são muitas as variáveis que nos fazem mudar de trincheira ou abandonar de todo o combate, desde infelizes acontecimentos traumáticos a amigos infalíveis, desde eventos que fazemos acontecer a eventos que nos acontecem. Assim, seja permitido a esses jovens pronunciarem-se sobre as coisas do mundo e do pensamento, os seus gostos e receios, a sua ideologia e os seus passatempos.

De uma das turmas que lecionei este ano letivo que passou fazia parte um aluno – vamos chamar-lhe Dimitri – filho de pais russos. Ele mesmo nascera na Rússia, embora tenha vindo para o nosso país pela mão da mãe quando ainda era criança. Entendia o português na perfeição e, salvo alguma palavra mais difícil de pronunciar, não apresentava qualquer dificuldade de comunicação quer com colegas quer com o corpo docente. De resto, transitou de ano sem qualquer problema. Na sua terra natal vivia o resto da família, com quem tinha pouco contacto presencial, mas graças à tecnologia conseguia manter viva a chama afetiva, acrescentando ainda a atualização das novidades nacionais. Durantes estes anos portugueses conseguiu visitá-los duas ou três vezes. Na última semana escolar, nas últimas aulas do ano letivo, quando os conteúdos já foram apresentados e os conhecimentos avaliados, existe sempre espaço para atividades mais lúdicas, ou desportivas ou recreativas em sala de aula. Foi numa dessas aulas descontraídas que surgiu uma conversa interessante sobre a guerra na Ucrânia e sobre Putin. Espelhando o sentimento nacional generalizado, os alunos tomavam posição pelo país invadido, esgrimindo, dentro dos seus conhecimentos e possibilidades, argumentos que me pareceram até bastante razoáveis. Sabendo da origem do Dimitri – todos sabíamos – ia olhando para ele e estudando as suas reações, não fosse ele sentir-se melindrado ou ofendido.

Neste ponto devo deixar claro que o aluno sempre fora respeitado por toda a comunidade escolar e que nunca ninguém o provocara ou havia posto à prova quanto a essa questão. Entendi então que seria uma oportunidade excelente para todos os demais: ouvir um russo opinar sobre aquele acontecimento, algo que lhe dizia, ao contrário de todos nós, diretamente respeito. Conhecendo o aluno de há vários anos, sabia que não teria nenhum embaraço em o fazer, a única dúvida que me assistia era se estaria disposto a comprometer-se diante dos colegas com uma (eventual) posição alternativa. Sabia também que os colegas, qualquer que fosse a sua visão, iriam respeitá-la. Afinal, tratava-se da disciplina de Filosofia. Assim, propus-lhe a hipótese de nos dar a perspetiva de um russo face ao evento e seus protagonistas, algo que, salvo algumas declarações de responsáveis do Kremlin nos canais televisivos, nenhum dos ali presentes tivera oportunidade de ouvir em primeira mão.

Por sua iniciativa, com a minha permissão, dirigiu-se para a frente da sala e voltou-se para os colegas. A conversa – pois de uma conversa se tratou – durou cerca de trinta minutos, durante a qual o Dimitri defendeu com garbo a sua posição e respondeu com humildade às questões levantadas pelos colegas. Para não ser demorado e não havendo motivo para ser exaustivo, apresento resumidamente, realçando os aspetos que me pareceram de maior relevo, a posição do aluno.

Dimitri vê com naturalidade a invasão russa. Tratando-se de territórios que historicamente pertenceram ou tiveram ligação próxima à Rússia e, acima de tudo, com a aproximação política, diplomática e militar da Ucrânia ao Ocidente, nomeadamente à NATO, Putin apenas viu-se obrigado a proceder à operação militar. Nunca esquecendo de mencionar a população de origem e língua russas naquele país, o aluno aceita, sem aprofundar o tema, que Zelensky e o seu regime padeciam de uma inclinação (para ser comedido) nazi. Dimitri avançou rapidamente com a ideia que o Ocidente (embora aqui fosse trocando o termo com Portugal) estava em declínio e que a Rússia não se deixaria afetar e acompanhar na queda – que ele percebe como inevitável para os primeiros. O Ocidente permitiu-se degradar em termos políticos, económicos e culturais. Sem o dizer claramente, prefere um regime mais musculado (em Ciência Política denominar-se-ia de democracia iliberal) como o de Putin, a quem ele chama, sem qualquer pudor, de herói nacional, um salvador da pátria russa, nação que passou recentemente por um período negro e humilhante às mãos dos americanos e dos europeus e com a complacência de políticos sem escrúpulos como Iéltsin.

Era urgente salvar a Rússia, e não apenas salvar, mas voltar a constituir-se como um grande império e uma grande potência, um dos principais players da comunidade internacional. Devolver o orgulho ao povo russo e a glória à Mãe Pátria. Putin é o homem certo à hora certa, um D. Sebastião das estepes e dos Urais.

Dimitri deseja, uma vez finalizado o ensino secundário, voltar às origens, onde os familiares o esperam de braços abertos e com saudade. Segundo ele, ao contrário do Ocidente (ou Portugal, vai-se repetindo a troca), a vida corre de feição por aquelas latitudes, onde as suas gentes são felizes e prósperas, onde não falta nada e onde existe progresso e as novidades tecnológicas chovem diariamente. A Federação é uma terra de futuro!

Na sua visão (que podemos considerar – eu considero) distorcida da realidade russa, o jovem oferece-nos uma outra perspetiva, uma perspetiva engajada (como não poderia deixar de ser – é um russo) que antevê esperança e, acima de tudo, futuro. Se é uma amostra fiável do povo russo, se todos os milhões de russos, ou a sua maioria, partilham deste otimismo, é uma questão de difícil avaliação. Sabemos que os estudos de opinião e os inquéritos não são propriamente de confiança nestes regimes autoritários, onde a opinião pública é facilmente disfarçada e os beneplácitos constroem-se artificialmente.

Quanto à receção da turma perante as afirmações do Dimitri, mostrou-se sempre respeitosa e, no final, teve direito a uma salva de palmas pela exposição tão clara e esclarecedora. Provavelmente, ninguém naquela pequena plateia (eu incluído) mudou de opinião sobre o tema, mas ganharam mais mundo. Alguns, perante este relato, acusar-me-ão de insuportável imparcialidade ao permitir que um putinista se expressasse tão livremente numa sala de aula. Chamo a atenção para dois aspetos: primeiro, essa liberdade é uma das coisas que nos distinguem do regime russo e, segundo, as televisões e as rádios (e as redes sociais), através de alguns comentadores, exibem opiniões russófilas mais descaradas, e, mais grave, descaracterizadas pois não vividas nem sentidas senão ideologicamente.

Agradeci ao Dimitri pela franqueza e a coragem. Apesar de todas as diferenças de opinião que existem entre nós, é agradável sentir uma veia de esperança no futuro, algo que os nossos jovens geralmente não partilham. Estejamos mal habituados ou demasiado confortáveis para nos impedir de reclamar, ou ainda, sendo intrínseco a uma democracia madura esse nível de saturação e desmotivação, deve fazer-nos pensar que existem outras formas de perceber a realidade.

Professor e formador nas áreas de Filosofia, Psicologia, Sociologia, Turismo, História e Política

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