
Dostoiévski não desprezava a verdade — tal como a maioria das pessoas —, mas neste caso particular, podendo existir uma ameaça factual ou lógica à sua espiritualidade, preferia mantê-la incólume.
Se, para Dostoiévski, Cristo encarnava algo mais profundo do que a verdade (sentido, salvação, amor, redenção), seria expectável que lutasse até à morte pela sua coesão existencial e visse na verdade racional uma meliante, uma inimiga, uma agressora.
Esta frase de Dostoiévski daria — em certo sentido — razão a Nietzsche, quando argumentava que a motivação fundamental do ser humano não era a verdade, mas a vontade de poder. A procura da verdade seria para o filósofo uma máscara de aparência nobre para o desejo de controlar, ordenar ou justificar o mundo segundo a própria perspectiva.
O que os separa, Dostoiévski e Nietzsche, não é a estrutura — que é idêntica — mas a orientação ética ou ontológica do que cada um entende por "valor superior": para Dostoiévski, era Cristo, símbolo do amor, da compaixão, da redenção, enquanto que para Nietzsche era a vida — como força e criação.
Podemos dizer que Dostoiévski é o Nietzsche que escolheu a ideia de perdão. E Nietzsche é o Dostoiévski que escolheu a revolta. Um ajoelha-se, o outro ri.
Inspirado nesta ideia, Michel Foucault cunhou a expressão "regime de verdade", para designar o conjunto de procedimentos e relações de poder que determinam o que é considerado verdadeiro numa sociedade. E, mais recentemente, o filósofo Joseph Shieber usou o termo "tese de Nietzsche" (Nietzsche thesis) para descrever uma ideia análoga: as pessoas não procuram a verdade, mas sim a confirmação daquilo em que já acreditam. Ou seja, o comportamento cognitivo humano tende mais à racionalização do que à racionalidade.
Esta formulação aproxima-se também de conceitos como o viés de confirmação, mas com uma estrutura filosófica mais profunda e crítica: as pessoas organizam a sua visão do mundo em torno de narrativas identitárias, e a verdade só é aceite se puder ser integrada nessas narrativas sem provocar dissonância ou perda da sua posição social, da auto-preservação, da manutenção do status.
Oportunistas farão uso da tese de Nietzsche para disseminar certas ideias, pois sabem muito bem que se a identidade é atacada, é a verdade que cede, é ela que cai de joelhos.
A nossa vigilância epistémica, que fundamentalmente nos guia — nem poderia ser doutro modo, pois sem um mínimo de verdade seríamos incapazes de navegar na realidade —, é a grande sacrificada quando alguns valores e crenças que abraçamos como identitários são postos em causa.
Porém, a verdade não é somente ignorada — ou enxotada como mosca teimosa —, quando vem armada com as bombas necessárias para destruir toda uma construção ideológica passa a ser ela própria a ameaça.
Não será pois de espantar a quantidade de notícias falsas, de arrazoados contraditórios ou incoerentes ou ridículos, e de votos em partidos que prejudicam directamente quem neles vota, pois qualquer ameaça — real ou artificial — à coesão dum conjunto de crenças e valores existenciais leva à revolta, à agressividade, ao desespero, ao ressentimento e, nestas situações, a verdade pode bem ser, mais do que ignorada ou desprezada, espezinhada ou mesmo deportada para o outro lado do muro, independentemente do lado do muro em que se está.
O problema deste desarranjo cognitivo no que concerne à verdade é o sério prejuízo que causa à sociedade no seu todo, e o mais sarcástico é que a verdade torna-se agente polarizador: sempre que ela aparece, cerram-se fileiras para defender o possível colapso de sentido da ala atacada pela realidade factual.
Mas a ironia não termina aqui: por se recusarem determinadas verdades, algumas crenças são mantidas e exaltadas, e quanto mais tempo passa sem que sejam arranhadas por factos, mais se conclui que só podem ser verdadeiras.
E assim atinge-se a reviravolta final: a verdade passa a ser mentira e a crença passa a ser verdade.
Escreve quinzenalmente no SAPO, à quarta-feira//Afonso Cruz escreve com o antigo acordo ortográfico