No dia 28 de Agosto de 2025, o País apagou-se, o quadro nacional foi abaixo, sem aviso nem cerimónia, as ruas encheram-se de pessoas, as esplanadas também. Comprou-se papel higiénico, latas de conservas, bebeu-se cerveja e houve quem a acompanhasse com música (ainda há instrumentos que não são eléctricos, incluindo a voz humana, e é sempre bom quando evidências destas se tornam ainda mais evidentes e enchem as ruas). Havia crianças a correr nos parques, como se tivessem acabado de descobrir esse espaço tão adequado à manifestação da infância, mas tão esquecido quanto a palavra «transístor». E à noite, à luz hesitante das velas, leu-se (ou talvez não tenha sido bem assim, reformulo, portanto, para uma visão mais realista: os leitores leram, os outros jogaram às cartas ou jogos de tabuleiro). É verdade que a vela é um objecto fascinante, Gaston Bachelard tem um livro dedicado a elas, A Chama duma Vela (La Flamme dune chandelle), em que se lê algo como «a vela é um ser vivo, com quem se partilha o tempo», «a luz artificial dispersa-nos; a chama da vela concentra-nos» e «a chama da vela é uma luz íntima. Quem contempla uma vela não vê o mundo, sonha o seu sonho».

No dia seguinte ao apagão, já com vários interruptores ligados, incluindo o da nostalgia, falou-se dos tempos em que se jogava à bola na rua, em que se acampava sem tomadas, nutridos — ou mal nutridos — com salsichas e atum, em que se lutava contra a escuridão com uma lanterna a gás, jogando kemps pela noite dentro.

De facto, era assim porque os constrangimentos eram maiores: agora há mais escolha, ainda que o pessimista, o melancólico ou o declinista a negue. Os interruptores que temos, cada vez mais omnipresentes, não são amos, são ferramentas, podemos ligá-los ou desligá-los, ou seja, podemos acender a luz ou deixá-la apagada, podemos sair para a rua ou ficar em casa, podemos jogar à bola ou ver televisão.

Esse tempo do berlinde e do quarto escuro (que brincadeira adequada para um cenário de falta de electricidade) está à distância dum interruptor, à distância dum indicador. Podemos ligar um aparelho qualquer ou acender a luz, mas podemos não o fazer. O que constrangimentos — como o apagão em causa — nos podem mostrar é o valor da escolha e da liberdade. Pode ser divertido passar umas horas num dos cafés do bairro, conhecer umas pessoas e à noite ler à luz da vela, mas — e não parece constituir novidade, pelo contrário —, isso é algo que se pode fazer todos os dias. Há um interruptor que o permite: basta esticar o indicador ou não o esticar.

No dia do apagão estava bom tempo. Se tivesse tempesteado teriam todos ficado em casa. Não teriam grelhado entremeada na varanda. E o dia seguinte talvez não viesse com tanta nostalgia. Provavelmente porque, nesse caso, a noite anterior teria sido passada com algum medo ou desconforto, além da inquietude e da incerteza causada pela ausência de comunicação: é que a chama das velas, mais do que permitir a leitura, teria iluminado a velha fragilidade humana, que os interruptores, as redes, as casas aquecidas, nos ensinaram a esquecer.

A escolha é um privilégio — frágil e precioso. E talvez a nossa dificuldade seja essa: habituámo-nos tanto a poder escolher que, no dia seguinte a uma qualquer limitação, valorizamos o que nos é imposto, a vida de antigamente, a tal verdadeira vida, trazendo à superfície a nostalgia do escuro, que é valor de dia seguinte: tende a aparecer com os interruptores todos ligados.

Talvez o que nos falta não seja menos luz, nem menos tecnologia — talvez o que nos falta seja escolher mais vezes apagar, mais vezes sair, mais vezes aceitar a beleza vulnerável do que não é garantido, pelo menos enquanto ainda há escolha, enquanto ainda há luz, eléctrica, natural e mental, pois é possível que a imposição da noite esteja mais perto de nós do que a própria jugular — para usar a expressão alcorânica —, mais perto de nós do que julgamos ou queremos. E, talvez, nessa noite demasiado espessa, não haja voz para cantar cumbaiás em nenhuma esplanada do mundo.