Todos os trabalhadores sem excepção têm o direito de aspirar a melhores remunerações e condições de trabalho. Têm o direito de as reivindicar organizando-se colectivamente com o propósito explícito de tornar a sua posição negocial mais forte na relação com o empregador.
Por sua vez, os sindicatos têm a liberdade de agir na defesa dos interesses dos seus membros, incluindo, nas circunstâncias mais extremas, ameaçar com a greve e de exercer esse direito constitucionalmente garantido.Sobre isso não há qualquer dúvida numa sociedade democrática como a nossa.
Sucede que greves praticadas como sistema por sindicatos ao serviço de interesses partidários adquirem um outro cariz. Quando essa estratégia política tem lugar em empresas monopolistas do serviço que prestam, ainda para mais reforçado pelo interesse público fundamental de que esse serviço se reveste, mais nociva ela se torna. E quando essa empresa monopolista é estatal, a nocividade torna-se ameaçadora.
Serve este longo enquadramento para tentar perceber o que se passa na greve na CP que ainda dura. Atirando para o caos a vida de centenas de milhares de pessoas, as consequências da greve são sentidas por aqueles que menos rendimentos têm, por aqueles que têm horários mais rígidos, por aqueles que não têm as condições de trabalho dos funcionários da CP.
Na verdade, as pessoas que veem as suas vidas perturbadas pela greve têm, em média, remunerações bem mais baixas do que o funcionário médio da CP. Basta examinar os múltiplos subsídios e prémios que auferem os trabalhadores da CP, tal como consta do acordo de empresa de 2022. Por exemplo, os maquinistas gozam de subsídio generoso por trabalho de emergência (podendo duplicar ou até triplicar a remuneração diária normal; abono e ajuda de custo por itinerância; abono por deslocação; ajuda de custo por repouso fora da sede, a que acresce reforço do subsídio de refeição; abono de transporte ou disponibilidade; diuturnidades por períodos de 5 anos de serviço; subsídio de escala; prémios de “condução”, isto é um prémio por cada período completo de trabalho diário e outro prémio equivalente por condução anual, contando a actividade sindical com trabalho efectivo; 25 dias úteis de férias; subsídio de férias suplementar; complemento ao subsídio de doença concedido pela Segurança Social; seguro de saúde privado; subsídio de pré-escolar; descontos vários nas viagens de comboio para cônjuges, filhos e netos.
Nada a obstar que haja trabalhadores que obtenham boas condições de trabalho. Mas o exercício constante de greves que prejudicam gravemente todos aqueles que só podem sonhar com condições laborais deste tipo convertem-se em provocações. E agravadas quando têm lugar numa empresa que extrai anualmente centenas de milhões de euros dos impostos dos portugueses, onde se incluem todos os que são prejudicados por essas greves.
Pedro Nuno Santos, que se cobriu de ridículo a vangloriar-se de ter posto a CP “a dar lucro”, esqueceu-se de acrescentar que os menos de 2 milhões de lucros em 2024 se deveram ao saneamento da dívida da empresa ter sido feito com 2,1 mil milhões dos impostos de todos e às transferências anuais do Estado em cerca de 170 milhões pelo serviço público que as greves evidentemente comprometem.
Não foi só neste detalhe que Pedro Nuno Santos se cobriu de ridículo. Ao atacar as declarações não devidamente ponderadas de Luís Montenegro sobre a necessidade de “acabar” com o abuso da greve, mexendo na lei, Pedro Nuno Santos desavergonhadamente não se lembrou de que ele próprio em 2019, enquanto Ministro, fez exactamente a mesma ameaça aquando de outra greve. Na altura, eram os motoristas de materiais perigosos quem ameaçavam parar o país. Era gente que não tinha, nem de perto, as condições laborais dos funcionários da CP. O contraste gritante entre uns e outros aparece pela simples comparação das reivindicações de então com as que são feitas agora pelos sindicatos da CP inflexíveis na greve. Em 2019, os motoristas que pediam salários de 1200 euros e um subsídio específico de 240 foram sujeitos a uma campanha pública de difamação e de intimidação. Tudo culminou com a instigação do governo de António Costa para o Ministério Público desencadear um processo que resultaria na extinção pelos tribunais do Sindicato Nacional dos Motoristas de Matérias Perigosas em 2020, confirmada pela Relação em 2022. A ordem da legalidade é sagrada, mas convém notar que foi uma amplíssima maioria de esquerda – a Geringonça – quem fez extinguir um sindicato em Portugal. Tudo resumido sabemos porquê: o sindicato não tinha a cor partidária certa.
Por fim, é preciso não esquecer que o suplício da perturbação da vida quotidiana por greves recorrentes atingiu os habitantes da grande Lisboa também por via do Metro. Nos últimos 10 anos o ritmo das greves e a degradação chocante da qualidade do serviço de transporte pelo Metro de Lisboa obriga-nos a pensar nos ombros de quem pesa a responsabilidade última por esta calamidade. E a resposta é simples: António Costa.
Foi ele como Primeiro-Ministro da Gerigonça, em mais um gesto de sacrifício do interesse nacional em nome do seu sucesso político pessoal, quem abortou a subconcessão do Metro de Lisboa a um grande grupo privado estrangeiro preparada pelo governo de Pedro Passos Coelho. Com António Costa, toda a grande Lisboa foi brindada por 10 anos de greves sem fim e transporte público de Terceiro Mundo.
A razão para uma empresa ser pública só pode ser a natureza irredutivelmente pública do serviço que presta. Mas se, por ser estatal, essa empresa se converte no espaço de acção política de sindicatos partidários sacrificando a sua verdadeira função, então temos um problema sério de traição ao interesse público.
Escreve no SAPO quinzenalmente à terça-feira // Miguel Morgado escreve com o antigo acordo ortográfico