Neste Natal de 2020 estreou «Um conto de Natal de Charles Dickens» que, segundo disse, "é uma obra que assinala da melhor maneira onze anos de escrita regular de contos musicais para crianças e doze obras desse género". O que sentiu ao estrear esta obra num ano cheio de obstáculos para a cultura?

“Um Conto de Natal de Charles Dickens” foi, efetivamente, a minha única obra de orquestra estreada durante a pandemia e assinalou da melhor maneira, pesem embora as circunstâncias, onze anos de escrita de obras deste tipo para crianças. Esta é a décima terceira obra nessa linha e, a meu ver, uma das melhores que escrevi. Qualquer manifestação cultural numa altura de restrições como esta pode ajudar as pessoas a ultrapassarem o medo, a angústia ou o desalento, e foi isso que tentei com esta história que, no fundo, é uma história de redenção e de esperança no ser humano e no que de melhor este tem para oferecer à comunidade. E é disso que precisamos nestas alturas, espírito de comunidade.

 Acha que a música clássica está a sofrer muito com esta pandemia?

Penso que toda a gente, em todas as profissões e negócios, com as raras e óbvias exceções (fabricantes de vacinas, máscaras, ventiladores e gel, talvez!), está a sofrer de alguma forma. A música clássica não é exceção, mas em alguns casos é mais complicada do que a música pop ou jazz, porque os concertos orquestrais, ou a ópera, não só exigem muita gente em palco, como exigem instrumentos de sopro ou a voz (em coro) que são mais complicados de controlar em termos da disseminação de bactérias e da proximidade social.

Como fazer uma ópera sem o coro, ou com o coro e a orquestra totalmente espalhados num espaço já de si exíguo, e sem que os cantores principais se toquem? Como interpretar uma sinfonia de Mahler com metade dos músicos? A ópera e a orquestra são as baixas principais desta pandemia mais as equipas técnicas que, muitas vezes, trabalham a recibos verdes (técnicos de luz, de palco, de som, etc.), ao contrário dos músicos que, também normalmente, continuam a receber o seu ordenado. Tem havido, porém, algumas compensações, em particular as várias gravações profissionais que têm sido feitas. Se os músicos não podem tocar para o público, então entram em estúdio e gravam discos. Até porque, têm mais tempo agora. Assim, nunca tive tantas peças gravadas em CD como neste ano que passou, e já em 2021 continuo a ter várias propostas de inclusão das minhas obras em próximos CDs. Ao mesmo tempo, algo que era esporádico no passado recente, que era as instituições gravarem os concertos (fosse em áudio ou em vídeo), é agora comum, o que nos deixa com registos, a maior parte das vezes, de boa qualidade, nomeadamente em vídeo HD. Ou seja, algo que era considerado sempre um bocado complicado, custoso, e etc., pelas instituições, autarquias e salas, é agora comum.

Como descreve o ato de compor uma obra?

É difícil descrever algo tão íntimo, até porque cada compositor terá os seus hábitos e as suas vivências, e estes e estas serão, certamente, muito diversos. Posso dizer que, não obstante se tratar de criação artística, existe sempre um lado pragmático, profissional, “frio”, digamos assim, que se alia à parte da inventividade, da intuição.

A ideia, romântica, do compositor que está no café com os amigos e de repente surge uma ideia e este escreve-a no primeiro papel que encontra à mão, e depois chega a casa e dessa inspiração divina nasce a obra genial, é uma imagem popularizada em filmes e livros de divulgação, mas que raramente corresponde à realidade.

É verdade que podemos, aqui e ali, tomar notas, apontar algo que nos vem à cabeça, mas o trabalho de escrita de uma peça é, nas palavras de Balzac, mais “transpiração” que “inspiração”. Começa por termos técnica: boas ideias, sem a técnica necessária para se desenvolverem, normalmente não dão em nada. Nisso, sou extremamente profissional. Estudar, aprender, dominar a matéria musical, procurar, como Ravel, a perfeição, são cada vez mais os meus objetivos. Quanto mais sei “mais sei que nada sei”, na verdade. A partir daí, as ideias podem ser bem encaminhadas. Claro que é melhor ter ideias e pouca técnica, do que muita técnica e nenhuma ideia de jeito. Com algumas ideias boas temos ao menos algum prazer a ouvir a música, sem ideias boas apenas obtemos uma arte académica, fria e desinteressante, a chamada “má música bem escrita”, nas palavras de Debussy a propósito de Saint-Saëns, que nem sempre mereceu o comentário acerbo do seu colega mais jovem.

Começou a compor muito cedo? Como surgiu esta vontade?

Comecei a compor com cerca de 8-9 anos. Sei disso porque a minha mãe conservou uma peça de piano que escrevi, intitulada “O Lago dos Nenúfares”, uma música baseada na escala de tons inteiros, escrita sob a dupla influência de Debussy e de Monet. Infelizmente, a partitura perdeu-se. Como recentemente a minha mãe redescobriu umas pinturas e desenhos que fiz nos meus tempos de adolescência, pode ser que me redescubra também essa peça. Perdi muitos manuscritos, incluindo o do meu “opus 1”, que mostrei a Fernando Lopes-Graça e que este anotou, mas é o resultado de quatro mudanças de casa… ; Quanto à vontade, isso é como tudo o resto. Se o meu pai não me tivesse metido a ouvir música desde muito cedo, não fosse ele próprio músico e não me tivesse ensinado as primeiras noções de teoria musical, teria eu sido compositor? Nunca saberemos. O que sei é que, desde que o meu pai me deu Mozart, Schubert e Beethoven a ouvir (a maioria do que ouvi até aos 6 ou 7 anos foi música destes três compositores), a música significou algo de essencial para mim. No entanto, dividi a minha atenção e os meus arrepios estéticos também pela pintura e pela literatura, sendo a pintura, destes três amores, e até aos 14 ou 15 anos, o amor principal.

créditos: Sérgio Azevedo

A decisão de enveredar pela composição só surgiu quando fui estudar com Fernando Lopes-Graça, com 16-17 anos já era o que mais gostava de fazer mas ainda tocava guitarra e piano, ainda fazia uns desenhos, ainda escrevia uns poemas, ainda não tinha a certeza de qual iria ser a minha vida. Venceu a música e a composição, e olhando para trás, penso que não me iludi ao sentir que era isto que queria fazer para o resto da minha vida. Ainda hoje, raros são os dias que não escrevo alguma coisa, sejam ideias, esboços ou mesmo pequenas peças, para “descansar” das peças maiores. E nunca precisei de encomendas, pagas ou não, para escrever música. Sem querer parecer arrogante, e independentemente do valor que a minha música tem ou não, escrevo música como uma macieira dá maçãs: natural e inevitavelmente.

Como referiu anteriormente, estudou com Fernando Lopes-Graça na Academia de Amadores de Música. Esta convivência teve muita influência na sua vida como compositor?

Naturalmente! Foi uma experiência acima de qualquer outra (Constança Capdeville e Christopher Bochmann foram também muito importantes para mim, um pouco mais tarde, mas, em termos da importância histórica, humana, artística e ética da sua personalidade, estar com Fernando Lopes-Graça era como estar com Stravinsky ou Bartók), e que prezo ainda hoje e até ao dia em que desaparecer. Sinto, aliás, muito a falta do meu Mestre. Gostaria que ele ouvisse e comentasse o que faço hoje, agora que já não sou um aprendiz e que escrevo música muito melhor do que aquela que fazia no tempo em que com ele estudava. É uma das coisas de que mais pena tenho, pois é um sentimento agridoce… tê-lo conhecido, com ele trabalhado, foi uma dádiva, mas tendo-o já feito numa altura em que a nossa diferença de idades era de 70 anos, nunca poderia esperar que o Graça vivesse até poder escutar a minha música de maturidade.

Humanamente, e para além de professor, o Graça (era assim que gostava de ser tratado pelos amigos, não “maestro”, nem “mestre”, ou outro título qualquer pomposo) foi um segundo avô para mim. Dormi várias vezes em casa dele, comi muitos almoços, lanches e jantares confecionados por ele, ouvi os seus discos, li os seus livros, remexi nas estantes de partituras, toquei nos dois pianos que lá tinha em casa, fiz-lhe recados, enfim, convivi com ele como convivi com os meus avós, e o Graça era muito paternal.

O Graça (era assim que gostava de ser tratado pelos amigos, não “maestro”, nem “mestre”, ou outro título qualquer pomposo) foi um segundo avô para mim

Não gostava muito de expressar emoções mais fortes com as pessoas, mesmo com as chegadas, mas de vez em quando lá se descaía e lá lhe corria uma lágrima pelos olhos, quer a ouvir Mozart ou Bartók, que a escutar a sua própria música. Em termos de influência musical, muitas das minhas primeiras peças para piano foram bastante influenciadas pela música do Graça e pela de compositores dos quais ambos gostávamos e que, por sua vez, o influenciaram a ele: Stravinsky, Bartók, Falla, entre outros.

É compositor, professor (leciona na Escola Superior de Música de Lisboa) e também pai. Quais são as suas estratégias para se concentrar no trabalho quando tem o seu filho por perto?

A minha estratégia é render-me. Agito o lenço branco da rendição e colaboro com o inimigo. Com ele por perto não há concentração possível, por isso aproveito as sestas e as noites para ir trabalhando, ou então os momentos em que a minha mulher está a tomar conta do Tomás, e vice-versa.

Ambos somos músicos profissionais, ambos temos de lidar com o cansaço e a falta de tempo que um bebé causa. No caso dela é pior, uma vez que eu posso compor à noite mas a Diana não pode tocar piano nem muito de manhã nem muito tarde, pelo que, em certa medida, até sou um privilegiado. Também é verdade que nesta altura da minha vida, as minhas aulas já correm em piloto-automático no sentido em que o meu saber já é sólido, e já não passo tantas horas a preparar aulas. Também como compositor, autor de um catálogo extenso e sem ter de provar mais nada a ninguém, não preciso de escrever tanto nem de acudir a todas as solicitações.

Já me posso dar ao luxo de escrever maioritariamente por encomenda, principalmente quando se trata de peças maiores, as mais morosas, e, assim, o meu tempo fica mais livre para ser pai, marido, professor, e para viver, claro: ler, passear, filmes, ir a concertos ou, simplesmente, não fazer nada. A ociosidade é uma das condições da criação artística, a arte aparece porque começa a existir tempo livre, sem essa condição, não há arte.

No livro "A Maior Flor do Mundo", Saramago disse que "As histórias para crianças devem ser escritas com palavras muito simples...". E na música, concorda com esta ideia?

Sim, concordo, dentro dos limites que as analogias entre artes são possíveis. Na linguagem, é fácil definir o que são palavras simples, dado tratar-se de algo que todos aprendemos e que acaba por nos ser natural. Além disso, as palavras exprimem ideias concretas, qualquer criança saberá o que é uma “casa”, ou um “gato”.

A música é uma linguagem abstrata, sensível, epidérmica. Não significa, por si só, nada a não ser ela própria.

A música exprime-se a si mesma, e por isso não sei bem o que é simples ou não, inclusive para uma criança. A música, mais do que a linguagem, tem a vantagem de poder ser “compreendida” sem necessidade de tradução, como um texto, devido a esse seu lado imaterial, não-significante.

Dito isto, procuro aquilo que seja interessante para o ponto de vista da criança, mas excetuando as coisas mais óbvias (peças de menor dimensão, texturas menos densas, etc.), não tenho uma solução nem receitas, cada peça minha para crianças é muito diferente da anterior, e as linguagens musicais usadas vão do mais puro tonalismo até a texturas atonais, passando pelo modalismo, e por outras técnicas e sonoridades de que dispomos hoje em dia.

Tem algum projeto seu a estrear em breve?

Tenho várias obras a estrear, a maioria já vindas de 2020, embora, como referi atrás, não saiba se irão estrear nas novas datas previstas. De todas elas, as mais importantes são um outro conto musical, justamente baseado numa bela história de José Saramago “O Conto da Ilha Desconhecida”, uma curiosa história de amor e autoconhecimento, encomenda do Teatro Baltazar Dias, do Funchal, com o apoio da autarquia. É uma obra destinada a ser tocada pela Orquestra Académica do Conservatório de Música do Funchal, uma excelente orquestra de jovens dirigida pelo Francisco Loreto, personalidade grande da música madeirense, também ele compositor, para além de professor e maestro. Outra peça importante será o “Concerto para Orquestra de Sopros”, na Casa da Música, encomenda da Banda Sinfónica Portuguesa, orquestra da qual fui Compositor-Residente em 2020, e ainda uma terceira peça para grande orquestra intitulada “Diferenças sobre El Canto del Caballero e Pavana Real”, encomenda da Orquestra Sinfónica de Cascais e do seu maestro Nikolai Lalov, um dos meus mais antigos, fiéis e queridos intérpretes. Finalmente, há uma obra nova para a Orquestra Metropolitana de Lisboa, para a temporada 2021-22, mas sobre a qual ainda não posso revelar nada. Será uma surpresa…

Fora da composição mas a ela ligada, tenho neste momento vários projetos de livros em curso, um sobre a relação da música com o cinema, e outro sobre, precisamente, a composição musical, uma espécie de “Tratado de Composição”, só não sei é se estarão para breve, pois ambos são substanciais, e o tempo é escasso!