
Há cem anos nascia em Portugal a cerveja servida fresca, avulso, com espuma no ponto. A Portugália - Germânia na altura - inaugurava, sem o saber, uma tradição que se espalharia por todo o país. Fundada em 1925, a cervejaria Portugália celebra o centenário no próximo dia 10 de junho. As comemorações começaram há cerca de um ano, com uma revolução na imagem: mudou a cara, o logotipo, reformulou a mobília, inaugurou um balcão na icónica casa da Avenida Almirante Reis, em Lisboa, e estreou pratos na ementa. Mas tranquilizem-se os fiéis apreciadores do Bife à Portugália: o molho continua o mesmo - e recomenda-se - tal como os croquetes que acompanham a cerveja de pressão que aqui conquistou o nome de “imperial”.
A história da cervejaria remonta aos primeiros anos do século XX, quando Portugal dava um salto na produção industrial, e importava de fora métodos mais modernos. Foi nessa altura que a união da Fábrica de Cerveja Leão com a Companhia Portuguesa de Cervejas deu origem à Fábrica de Cerveja Germânia, nome inspirado pelas cervejarias da Alemanha, e que nasceu com o propósito de produzir cerveja ao nível das melhores do mundo.
Em 1912, num enorme terreno na Avenida Almirante Reis, começou a surgir o edifício, com 15.000 m², que recebeu equipamento e técnicos experientes do estrangeiro. Com a chegada da Primeira Guerra Mundial, em que Portugal combateu ao lado dos Aliados, o sentimento anti-germânico levou à mudança do nome da fábrica, que se passou a chamar Portugália. “A primeira marca de cerveja de pressão do país, a Imperial, teve origem na Fábrica Germânia que, a partir de 1916, se tornou Portugália. A cerveja saía de barris de madeira para os diferentes pontos de venda de Lisboa. Solicitar uma destas cervejas de pressão tornou-se tão popular que o nome ‘imperial’ ficou associado ao produto para sempre”, conta José Maria Carvalho Martins, diretor-geral da Portugália.
A distribuição da cerveja produzida na fábrica era feita em carroças, de forma relativamente precária, pelo que era comum os clientes dirigirem-se à fábrica para encherem os próprios barris. A ideia da abertura de um espaço para servir cerveja avulso, enquanto os clientes aguardavam o enchimento, foi ganhando adeptos, e ditou uma nova forma de consumir cerveja em Portugal. Para acompanhar, começou a servir-se marisco e bifes, com o famoso molho, receita de Arménio Dias de Carvalho, e que ainda hoje é o prato mais conhecido da casa. “Foi por volta dos anos 50. Desde então, o molho tornou-se um ícone da marca e nunca mais saiu da ementa”, diz.
Amália, Solnado e “A Canção de Lisboa”
José Maria Carvalho Martins, é um dos membros da quinta geração das famílias Carvalho Martins e Carvalho Vinhas, fundadoras da Portugália, que entraram no capital da empresa quando ainda se denominava Germania. “Foi mediante Manuel Henriques de Carvalho, em 1912, na sequência da vontade de fundar uma nova e grandiosa fábrica de cerveja na Avenida Almirante Reis. A família já vai na quinta geração à frente dos destinos da empresa, orientada nos seus princípios por um protocolo familiar que assegura a participação de todos os membros no rumo da gestão”, continua.
Entre os anos 40 e 50, a primeira Cervejaria Portugália, numa esquina da Avenida Almirante Reis, tornou-se num ponto de encontro de desportistas, políticos e artistas. “Amália Rodrigues, Vasco Santana e Raul Solnado, por exemplo, eram presença assídua, e a esplanada foi até escolhida para a cena final do filme “A Canção de Lisboa”, revela. Mais tarde, outros ilustres como Jorge Sampaio ou Mário Soares foram também presenças assíduas nas cervejarias Portugália.
No 25 de Abril, a empresa viveu momentos conturbados e a família esteve mais longe da administração da empresa. “Entre 1975 e 1977 a Portugália foi governada por uma comissão administrativa que, por sua vez, geria a Cervejaria Portugália. A família esteve sempre envolvida nos destinos da empresa, embora nesta altura com menor atividade. A 22 de agosto de 1977, a comissão administrativa entregou-lhes novamente os destinos da empresa, por considerar ser esta a melhor decisão”, conta.
Paulo Ribeiro tem 60 anos e trabalha há 45 na Portugália. Conhece a história do 25 de Abril pelo pai, que o mandou “de castigo”, com 15 anos, trabalhar para as obras do primeiro andar da Almirante Reis, que decorriam na altura. O pai, ali funcionário, dizia que ele andava a “passear os livros” e a jogar basquete e quis mostrar-lhe o que era a vida de trabalho. “A 26 de dezembro de 1979 meteram-me um martelo pneumático nas mãos. Isto é tudo cimento armado. Quando cheguei a casa tinha bolhas. A minha mãe chorava e o meu pai ria”, relembra. Mais tarde, Paulo quis “ser como o pai” e passou para a cozinha. “Na cave existia uma cozinha com copa onde se lavava a louça e se descascavam e palitavam as batatas à mão. Eram 20 sacas por dia, mais lavar a loiça”, relembra.
Paulo quis esperar pelo centenário para se reformar. Já trabalhou com quatro gerações da família, esteve até 1998 na Almirante Reis e depois “andou pelas outras”, até que, em 2023, foi para a cervejaria Trindade. “A minha filha mais nova ia nascendo na Portugália de Belém. A minha mulher, em 2001, era lá gerente e trabalhou até ao último dia. Assentava pedidos quando lhe rebentaram as águas. Tudo o que sou, de bom e de mau, devo à Portugália”, garante.
Da sala de cinema às vacas loucas
Ao relembrar tudo o que aqui passou, Paulo fala nas “vacas loucas” e de como esse foi, talvez, o primeiro grande desafio que se lembra de aqui enfrentar. De salas cheias, “repentinamente”, não tinham um cliente. Também a pandemia levou clientes, batatas e barris de cerveja, mas a alma resistiu e reinventou-se, à espera de melhores tempos. “Deitámos fora 750 litros de cerveja, mais de 400 quilos de batatas e milhares de quilos de carne”, conta pesaroso. Mas é para os tempos mais antigos que a sua memória foge com ânimo. Quando “lá em cima” havia um cinema ao ar livre; na entrada uma tabacaria e um engraxador; do elevador que ia até ao segundo piso; ou da sala de jogos que ficava por baixo do cinema. “Chegámos a ter sala de jogos americanos com fliper e bowling. Fechou porque saiu uma lei que proibia salões de jogos ao pé das escolas”, lembra.
“Vendíamos 2000 croquetes por dia ao balcão. Eram todos cá feitos. Se fosse hoje em dia éramos concorrentes dos pastéis de Belém”, ironiza, enquanto assegura que ali não se comprava nada feito. “Não existiam natas, o molho era feito com farinha torrada, que substituía a nata. O bife custava 140 escudos, com o ovo, e a imperial 8 escudos, 74 cêntimos atuais. Vendíamos muita cerveja a litro. As pessoas vinham com o garrafão. As nossas cisternas tinham uma capacidade de 12 mil litros de cerveja. Todas as semanas eram repostas. Tínhamos um consumo de 10 mil litros por semana. Agora deve ser para aí três a quatro mil por mês”, diz.
Divertido, Paulo revela que, antigamente, “até se costumava dizer” que quem vinha a Lisboa tinha de visitar o zoo, o Estádio da Luz e a Portugália”. No entanto, a história da cervejaria está ligada a outra afeição clubística.
“O meu bisavô, José Manuel Martins, jogou no Sporting. Foi internacional por Portugal em 1928, nos Jogos Olímpicos. É ele que marca dois golos na primeira vitória de Portugal sobre Espanha”, relembra José Maria Carvalho Martins, que conta que, na altura, a família acabou por pressionar o bisavô a desistir da carreira futebolística. “Desapareceu repentinamente do mundo do futebol. Era muito novo, estava no pico da carreira. Acabou por se dedicar aos negócios de família”, conta. “Era por isto que se dizia que para vir para cá trabalhar tinha de se ser do Sporting. Chegámos a estar com 115 colaboradores, e não havia mais de 10 pessoas que fossem do Benfica”, acrescenta Paulo Ribeiro.
Ovo estrelado doce e “bife” de camarão
Em 1997, o conceito nascido na Avenida Almirante Reis expandiu para uma rede de restaurantes. As outras lojas de rua, todas em Lisboa, situam-se em Alvalade, Cais do Sodré, Parque das Nações e Belém, que será a última a ser remodelada e a “fechar o ciclo” desta revolução na imagem da marca centenária. Também cresceu à boleia do conceito “Portugália Balcão”, presente nos centros comerciais, e que serve os principais pratos da casa mãe. Bifes com molho Portugália (a partir de €12,5), croquetes (€1,70), pregos servidos na frigideira de barro com molho e batatas fritas, mariscos e também a tradicional “Açorda de camarão” (€15,5), ou o “Pudim flan” (€3), sempre acompanhados de imperiais fresquinhas.
As novidades mais assinaláveis no menu, que chegaram com a revolução do centenário, são o “bife” de camarão tigre no molho Portugália (€22,5), a introdução do prato vegetariano “Cogumelos à Brás” e uma nova e original sobremesa, o “Ovo Estrelado”, comemorativa dos 99 anos da Portugália.
“O ovo estrelado doce tem o objetivo de trazer e de nos inspirar muito na tradição, no que é uma cervejaria tradicional portuguesa e popular”, conta o chef Paulo Carvalho, autor desta novidade gulosa que consiste numa espécie de natas do céu, uma combinação entre doce de ovo, bolacha e natas. “Como as cores eram aproximadas ao ovo, decidimos fazer esta brincadeira, O ovo é um elemento muito presente na Portugália. É uma reinterpretação que faz a ligação entre um elemento muito presente e a sobremesa”, diz.
O estilo de cozinha mais popular e muito ligada à cozinha tradicional portuguesa de Paulo Carvalho foram “determinantes” nesta parceria. O chef também colaborou na introdução de outros pratos como o “polvo ao alhinho”, ou o “provocador” “bife” de camarão tigre com molho Portugália. “A Portugália é uma instituição que abarcou muitas famílias e gerações. Tem clientes que vêm com três gerações de familiares, se calhar até quatro: avós, pais, netos e bisnetos”, conclui.
Hoje são 36 os espaços Portugália em todo o país. A marca detém ainda a Cervejaria Trindade, a Brasserie de L’Entrecôte, a Cervejaria Ribadouro, o restaurante “Segundo Muelle” e a fábrica de Pastéis de Nata “Manteigaria”. Cem anos depois, o molho ainda escorre no prato, a imperial chega fresca e, à mesa com o passado, sentam-se novas gerações de famílias a partilhar marisco, bifes e croquetes, construindo as memórias do futuro.