
A recente decisão do Tribunal Constitucional de travar, mais uma vez, a legalização da morte medicamente assistida em Portugal, relança um debate nacional que há muito ultrapassa o campo do jurídico-legislativo. Fala-se de um tema que mexe com os valores mais íntimos da sociedade: a liberdade individual, a dignidade na morte e os limites da intervenção do Estado na vida humana. Mas, apesar de já ter sido aprovado em diversas formas por diferentes maiorias parlamentares desde 2018, o diploma volta a cair. Desta vez, o novo Governo optou por adiar o tema sine die, remetendo-o para o fundo da gaveta política.
A decisão do TC, tornada pública esta semana, considerou o último diploma da Assembleia da República vago em conceitos e insuficientemente claro em aspectos fundamentais, como os critérios clínicos exigidos para o acesso à eutanásia. Trata-se do quinto chumbo constitucional em sete anos. O veredicto repete o que se tornou um padrão: os sucessivos governos e parlamentos não conseguiram ainda produzir um texto suficientemente robusto e juridicamente claro para garantir a sua promulgação sem reservas.
A posição do Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, continua a ser prudente, mas crítica. Desde o início que insiste na clareza e rigor extremo de qualquer legislação que envolva o fim da vida. O problema é que essa exigência, sendo compreensível do ponto de vista jurídico e ético, tem servido, na prática, para um eterno adiar.
Com a chegada ao poder da coligação liderada por Luís Montenegro, o ambiente político mudou. A eutanásia deixou de estar na linha da frente das prioridades legislativas. A nova maioria, apoiada pelo CHEGA, um partido que se opõe frontalmente à medida, parece mais interessada em evitar confrontos do que em resolver o impasse. O Ministro da Presidência, Leitão Amaro, já deixou claro que o assunto não será retomado nesta legislatura.
Esta decisão traduz um sinal político claro: o Governo prefere sacrificar um debate essencial sobre direitos fundamentais em nome da estabilidade da sua base de apoio parlamentar. Para muitos, trata-se de uma cedência lamentável ao conservadorismo mais retrógrado. Para outros, um gesto de prudência perante um tema sensível.
Perante este bloqueio institucional, quem perde são os cidadãos que vivem com doenças terminais ou degenerativas, em sofrimento irreversível, e que desejam ter o direito de escolher como e quando morrer. Muitos esperavam que a legalização da eutanásia fosse, finalmente, uma realidade, após anos de debate democrático e sucessivas votações parlamentares favoráveis.
Associações como a Direção da Associação Direito a Morrer com Dignidade já vieram a público lamentar a decisão e apelam ao relançamento do tema. Para estas organizações, não se trata de promover a morte, mas de permitir uma vida com dignidade até ao fim, evitando sofrimentos inúteis. Para os médicos, juristas e familiares que acompanham estas situações, a ausência de um quadro legal claro continua a criar zonas cinzentas, com riscos legais e dilemas morais graves.
Portugal está, neste momento, em contraciclo com a Europa Ocidental. Espanha legalizou a eutanásia em 2021, França está em vias de o fazer ainda este ano, e países como a Bélgica e os Países Baixos têm legislação consolidada há mais de uma década. Nestes países, os números mostram que os pedidos são limitados e controlados, e que os abusos são residuais. Em todos os casos, a decisão é acompanhada por comissões clínicas e éticas rigorosas.
O argumento do “efeito de escorregamento” — isto é, que a legalização levaria à banalização da prática — não tem sustentação empírica nos países que a adotaram. Pelo contrário, o que se regista é uma melhoria da qualidade dos cuidados paliativos, precisamente porque o debate sobre a eutanásia obriga a uma atenção reforçada ao sofrimento dos doentes.
A suspensão da legalização da eutanásia é mais do que um episódio jurídico. É o reflexo de um país que adia as decisões mais difíceis, por conveniência política ou por medo do confronto ideológico. A morte, como a vida, merece um debate sério, transparente e corajoso. Recusar esse debate é empurrar para a clandestinidade, ou para a solidão do sofrimento, quem mais precisa de amparo do Estado.
Portugal precisa de mais do que tecnocratas ou juristas a interpretar vírgulas em diplomas. Precisa de líderes que entendam que a democracia se faz também com escolhas difíceis. E que garantir o direito a morrer com dignidade é, talvez, a mais difícil e nobre de todas.