
Esta quinta-feira, 28 de maio, assinala-se o Dia Internacional da Saúde Feminina e, no âmbito desta efeméride, o Lifestyle ao Minuto entrevistou Marta Sardinha, fisioterapeuta especialista em saúde da mulher na Clínica Affidea Setúbal para saber mais sobre um tema ainda pouco falado, mas fundamental: a importância do pavimento pélvico na gravidez e no pós-parto.
Apesar de ser essencial para a qualidade de vida das mulheres, muitas desconhecem o que é o pavimento pélvico, como funciona e de que forma a fisioterapia pode ajudar a prevenir ou a tratar sintomas, como perdas de urina, dores lombares ou sensação de 'peso' após o parto.
Sendo cada vez mais necessário falar da saúde feminina sem filtros, Marta Sardinha desmistifica alguns tabus acerca desta condição na esperança de conseguir sensibilizar as pessoas e, principalmente, as mulheres.
© Marta Sardinha
O que é o pavimento pélvico?
O pavimento pélvico é composto por músculos, fáscia, ligamentos, nervos e vasos sanguíneos. É o chão do nosso abdómen. É fundamental para o suporte dos órgãos pélvicos (bexiga, vagina e útero e intestino); o controlo da continência da bexiga e do intestino; o controlo do esvaziamento da bexiga e do intestino; e é importante na função sexual e postural. É uma estrutura ativa, dinâmica e essencial para o bem-estar feminino, mas muitas vezes negligenciada.
Um pavimento pélvico saudável logo desde o início da gravidez faz com que a mulher usufrua desta fase da vida de forma mais tranquila e confortável e, contribui para um parto mais eficaz
O que se deve saber sobre este grupo muscular antes de se decidir engravidar?
Primeiro que tudo, saber que ele existe! Trinta por cento das mulheres sem queixas não sabem contrair o pavimento pélvico e 70% das mulheres com queixas também não o sabem contrair. O pavimento pélvico tem um papel essencial nesta fase.
Na preconcepção é importante avaliar a função do pavimento pélvico. Muitas mulheres desconhecem que já apresentam alterações, como tensão muscular ou fraqueza, que podem ser agravadas na gravidez. Um pavimento pélvico saudável logo desde o início da gravidez faz com que a mulher usufrua desta fase da vida de forma mais tranquila e confortável e, contribui para um parto mais eficaz.
Como é que o pavimento pélvico é afetado na gravidez?
Durante a gravidez, há aumento de peso e volumes internos do abdómen, alterações hormonais que tornam os tecidos 'mais elásticos' e ocorrem ajustes posturais. Tudo isso pode sobrecarregar ou enfraquecer o pavimento pélvico, levando ao surgimento de sintomas como incontinência urinária ou desenvolvimento de prolapso de órgãos pélvicos.
Devem ser fornecidas estratégias para que o parto ocorra de forma mais natural, onde a mulher seja a protagonista do momento e não os profissionais de saúde
E no parto, que disfunções podem ocorrer?
No parto vaginal, é exigido ao pavimento pélvico um máximo de alongamento e uma boa capacidade de relaxamento para permitir a passagem do bebé. Podem ocorrer lacerações da zona perineal, episiotomias mal conduzidas, ou lesões musculares e nervosas por estiramento, que podem resultar em incontinência, prolapso ou dor sexual se a mulher não preparar o seu corpo para este momento.
Um parto instrumentalizado tem maior probabilidade de levar à ocorrência de lesões, embora em determinadas situações possa ser justificado. Devem ser fornecidas estratégias para que o parto ocorra de forma mais natural (menos intervencionada possível), onde a mulher seja a protagonista do momento e não os profissionais de saúde. A grávida deve ter liberdade de movimento e o conhecimento do seu lado para poder ouvir o corpo e dar as respostas que irão facilitar o desenvolvimento do trabalho de parto e favorecer a descida do bebé.
Que cuidados é que o obstetra deve ter durante o parto para prevenir certas disfunções?
O obstetra tem um papel fundamental em todo o acompanhamento da gravidez e durante o trabalho de parto caso seja necessário alguma intervenção. No acompanhamento na gravidez é essencial que transmita informações atualizadas e permita à mulher (e casal) que tome decisões autónomas de acordo com as mesmas.
Durante o trabalho de parto deve respeitar o tempo do corpo, evitar manobras desnecessárias, como puxos dirigidos precoces ou episiotomias rotineiras, e estimular que a mulher adopte posições de parto que respeitem a biomecânica da zona pélvica (sobretudo posições verticais).
Gostaria também acrescentar que o obstetra não é o único profissional que pode ter um papel preponderante para que tudo ocorra de forma tranquila e segura para a grávida e bebé. Temos enfermeiros, fisioterapeutas pélvicos, auxiliares de ação médica, doulas, pediatras, entre outros, que devem complementar-se uns aos outros de forma harmoniosa em prol da mãe e bebé(s).
Realizar alguma intervenção sem o consentimento da grávida pode causar lesões emocionais permanentes
Por outro lado, que erros pode cometer que possam causar lesões permanentes?
Erros como o uso abusivo de fórceps e/ou ventosas ou desrespeito ao tempo de descida do bebé (é bom que a descida seja lenta e demorada para dar tempo para as estruturas alongarem de forma gradual e não repentina) podem causar lesões musculares graves ou neuropatias, com impactos funcionais duradouros.
Há outro tipo de erros que podem causar lesões emocionais permanentes, como por exemplo, realizar alguma intervenção sem o consentimento da grávida.
Quais os sinais/sintomas de que os músculos do pavimento pélvico não estão a funcionar corretamente?
Incontinência urinária (a rir, tossir ou com o espirro), de gases e fecal, urgência para urinar ou evacuar, dor pélvica, dor durante relações sexuais, sensação de peso vaginal ou observação de uma 'bola' na entrada da vagina (prolapso) são alguns dos sintomas mais comuns.
Um pavimento pélvico não funcional pode atrasar a recuperação global da mulher no pós-parto, comprometendo a função sexual, a continência e a estabilidade da coluna e da bacia
Por que razão cuidar deste grupo muscular é essencial para a recuperação pós-parto?
Porque o pavimento pélvico é um dos principais grupos musculares que intervém na gravidez e no parto. Tem de ter uma boa contração e resistência para fornecer um suporte adequado aos órgãos pélvicos durante a gravidez, onde há um aumento do peso e volumes internos. E tem de ir ao seu máximo de alongamento e relaxamento no trabalho de parto para permitir a saída do bebé. Um pavimento pélvico não funcional pode atrasar a recuperação global da mulher no pós-parto, comprometendo a função sexual, a continência e a estabilidade da coluna e da bacia.
Que cuidados se deve ter com o pavimento pélvico antes e após o parto?
Antes: avaliação e acompanhamento com fisioterapeuta pélvico, onde o foco será a consciencialização do mesmo e trabalhar de acordo com o necessário de forma personalizada com o objetivo de que o pavimento pélvico tenha uma boa capacidade de contração, de relaxamento, de alongamento, de coordenação e de resistência.
Depois: reavaliação após o parto e orientação na recuperação física, focada na postura, recuperação abdominal (trabalham em conjunto com o pavimento pélvico), recuperação funcional através de exercícios progressivos, tratamento de cicatrizes (seja de laceração, episiotomia ou de cesariana) e orientação para retomar a prática de exercício físico com segurança.
Qual o papel da fisioterapia na preparação para o parto e na recuperação?
Na preparação, a fisioterapia melhora a consciência corporal, prepara o pavimento pélvico para o parto (com técnicas como massagem perineal e treino de relaxamento) e ensina posturas e estratégias facilitadoras.
Na recuperação, ajuda a restaurar a função muscular, prevenir ou tratar (se houverem sintomas) disfunções, tratar cicatrizes e retomar a rotina diária com qualidade de vida.
A educação, o autoconhecimento corporal e o acompanhamento especializado são essenciais para manter a função e prevenir disfunções ao longo da vida
Como manter a saúde do pavimento pélvico?
Manter a saúde do pavimento pélvico não está restringido a fazer exercícios — é sobre cuidar do corpo de forma integrada. Isso inclui:
- Avaliações regulares com um fisioterapeuta pélvico, mesmo sem sintomas, para detectar alterações precocemente;
- Exercícios individualizados, que podem incluir fortalecimento ou relaxamento, dependendo da necessidade - nem todos os pavimentos pélvicos precisam de 'Kegels';
- Prática regular de exercício físico - o nosso pavimento pélvico não existe sozinho, funciona em equilíbrio com todos os restantes músculos do corpo;
- Evitar hábitos prejudiciais, como prender a urina por longos períodos (adiar as idas ao WC) ou fazer força excessiva para evacuar;
- Adoptar hábitos e rotinas que beneficiem a saúde pélvica (como cuidar do intestino).
A educação, o autoconhecimento corporal e o acompanhamento especializado são essenciais para manter a função e prevenir disfunções ao longo da vida.
Os abdominais e o pavimento pélvico trabalham bastante em sinergia e, se uma parte dessa sinergia não está a funcionar corretamente, acaba por ter efeitos na outra
Optar por uma cesariana protege o pavimento pélvico?
De forma alguma. Apesar de evitar o estiramento do pavimento pélvico típico do parto vaginal, a gravidez por si só já provoca alterações significativas, como aumento da pressão abdominal, alterações hormonais, mudanças na funcionalidade muscular e mudanças posturais. Além disso, a cesariana é uma cirurgia abdominal que pode afetar o controlo e eficiência muscular dos abdominais e músculos profundos do abdómen e a mobilidade global dos tecidos mais profundos, influenciando bastante o funcionamento do pavimento pélvico.
Os abdominais e o pavimento pélvico trabalham bastante em sinergia e, se uma parte dessa sinergia não está a funcionar corretamente, acaba por ter efeitos na outra. Por isso, o acompanhamento com fisioterapia pélvica também é essencial após uma cesariana, tanto para o tratamento da cicatriz como para a recuperação da função muscular de toda a zona pélvica.
A falta de educação sobre o corpo feminino contribui para o silêncio e para a negligência deste tema
Este tema ainda é um tabu? Porquê?
Sim, muitas mulheres sentem vergonha de falar sobre incontinência ou dor durante as relações sexuais. A falta de educação sobre o corpo feminino contribui para o silêncio e para a negligência deste tema. Há ainda uma normalização dos sintomas, como se fosse 'normal' perder urina durante a gravidez ou após o parto, o que dificulta a procura por ajuda. Muitos destes sintomas são comuns, mas não os devemos indicar como normais, porque é possível uma mulher ter filhos e viver sem perdas de urina!
Não é normal ter dor! Esses sintomas são comuns, mas têm tratamento. É preciso desmistificar que o parto altera inevitavelmente o corpo
O que considera crucial desmistificar acerca do pavimento pélvico?
Ainda é comum vermos as atuais recém mamãs ouvirem das suas mães que vivem com perdas de urina desde que tiveram filhos e que é normal. Não é normal ter perdas de urina! Não é normal ter dor! Esses sintomas são comuns, mas têm tratamento. É preciso desmistificar que o parto altera inevitavelmente o corpo - com prevenção e reabilitação adequadas, é possível ter recuperação e viver com qualidade de vida!
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