Desde pequenina que Gisela ganhou consciência da fragilidade da liberdade. Da mãe e da avó, ouviu as histórias do antigamente: “uma sardinha para quatro, carne uma vez por semana e da mulher dona de casa.” No entanto, Gisela sempre foi mulher dona de si.

O sucesso do seu álbum de estreia, Gisela João, em 2013, laureou-lhe o Prémio Revelação Amália, Globo de Ouro, Disco de Platina e o Prémio José Afonso, tendo sido considerada pelo júri a melhor voz que já apareceu depois de Amália.

Em conversa com o SAPO fala sobre a evolução da música, que há 50 anos caminha de braço dado com a liberdade. “Se há coisa que a arte faz é funcionar como um espelho do país onde está inserida, onde o artista se encontra, porque acaba sempre por falar daquilo que está à sua volta”, conta.

Também as sua canções são uma radiografia de uma sociedade em mudança: “A Casa da Mariquinhas”, outrora “morta e em ruínas”, é agora “O Hostel da Mariquinhas”, com “a fachada pintada e a entrada decorada com andorinhas”.

Gisela João,

Este ano celebramos os 50 anos de um país livre e democrático. Felizmente, não viveste numa altura em que a repressão e o lápis azul eram uma realidade. A tua família contou-te histórias sobre este tempo?

Contavam muitas histórias, não só a minha família, os vizinhos, os professores, as pessoas falavam muito sobre como é que era viver antes [do 25 de Abril]. Eu acho que todos nós, muitas vezes usamos uma expressão que eu acho que é muito mal empregue, que é quando alguém nos conta alguma coisa, nós dizemos: "Ah, eu imagino." Eu penso sempre: Não, não imaginamos, porque não vivemos, portanto, não conseguimos sentir a sensação de ter a liberdade espartilhada por um cinto. Como é que se vivia assim?

De que histórias te lembras?

Tantas... daquela velha história de uma sardinha para quatro, carne uma vez por semana, não se podia falar à vontade na rua, não podiam estar quatro pessoas juntas a conversar. As mulheres não podiam ter certas profissões, não podiam sequer almejar a certas coisas. Quando a mulher casava, era quase como se o homem estivesse a comprar um carro, uma casa ou um par de chinelos. O facto de não haver apoio, nem uma rede de apoio à maternidade, logo aí, dá-nos a sensação de que a mulher era para estar em casa a cuidar da família, da dita "família de bem". O que é esta "família de bem"? Tudo isto é muito complexo, mas ao mesmo tempo, para mim, tem uma resolução que seria simples. Eu sei que isto é pouco utópico, mas cada um deve ser aquilo que quiser ser e ponto final. Se nos preocupássemos mais com a nossa vida, em vez de nos preocuparmos tanto com a vida dos outros, a liberdade era menos afetada.

E este tempo, que nunca viveste, incentivou-te, de alguma forma, a dar valor às pequenas coisas da vida e a viver de forma mais plena?

A liberdade e a capacidade de sonhar, foram sempre as duas únicas coisas que eu tinha e onde ninguém podia tocar. Eu percebi que o sonho pode continuar a ser sonho, eu posso continuar a sonhar e os meus sonhos a existir. A liberdade, no entanto, comecei a perceber muito cedo que, precisamente pelo que ela apregoa - liberdade para todos de forma igual - é muito frágil, porque não se protege a si própria.

Como a protegemos?

Bem... Eu acho que o mundo está tão esquisito ultimamente. Nos últimos tempos, temos visto os maus, digamos assim, sem vergonha nenhuma na cara a dizerem tudo o que querem, como lhes apetece. Entram pela casa das pessoas adentro a dizer as maiores atrocidades, a quererem voltar atrás no tempo, a quererem limitar a vida das pessoas. Nós, que somos pela liberdade, temos de a defender e temos de a gritar. Neste caso, eu quero cantá-la, porque acho que é mesmo necessário.

És a mais velha de sete irmãos. Achaste importante, em algum momento da tua vida, consciencializá-los para o facto de que Portugal já foi um país sem muitas das liberdades a que eles têm acesso, atualmente?

Eles sempre souberam disso, porque aquilo que eu ouvia em casa, no meu prédio e na rua, eles também ouviam. No entanto, confesso que me foi difícil, principalmente por ser mulher, ser a irmã mais velha. Percebi muito cedo que ser irmã mais velha é diferente de ser irmão mais velho. Abrir caminhos para os meus irmãos, da forma mais libertária possível, foi uma coisa que me custou muito, foi doloroso, mas que me deu um gozo tremendo. É difícil ser uma mulher, ser a primeira a fazer as coisas, mas é importante abrir portas para quem vem atrás de nós.

"Enquanto artista orgulho-me muito de toda uma geração de artistas que, muitas vezes, mesmo presos e exilados, lutaram pela liberdade das pessoas do seu país."

Durante o Estado Novo, o papel da mulher era completamente secundário, o que torna ainda mais evidente a ausência de direitos e de liberdades. Atualmente, num país livre e democrático, como é que interpretas o papel da mulher na sociedade? Consideras que os direitos e liberdades entre géneros estão equiparados?

[risos] Claro que não. Claro que não estão equiparados. Meu Deus, equidade não existe. Não existe. Os números estão aí... Ainda há dias, saiu uma reportagem que dizia que nas camadas jovens, as mulheres, as miúdas, recebem menos do que os homens, uma percentagem muito grande...

26%...

É muito, é muito. Portanto, dizerem que existe igualdade ou equidade é uma treta, não existe. E dizerem também que nunca houve um controlo sob a mulher... Mas o que é que se passa? Viveram com a cabeça dentro de sacos? Acho que as mulheres precisam de falar, precisam de gritar e precisam de se unir, de facto. Precisam de se unir mesmo.

O que as impede?

Muitas vezes, por uma coisa que não é nossa, que nos foi enfiada cá dentro: olhamos para a outra e julgamos, como se fosse uma competição. Seja pela forma como ela está vestida, maquilhada, como ela está a falar, como está a andar... E isso é uma coisa que todas nós fazemos. Eu acho que é importante ter consciência de que isso acontece, porque a partir do momento em que temos consciência, é um passo que se dá para se tentar mudar. Eu sinto que no nosso dia a dia, a forma como nós vivemos a vida, tem muito impacto na vida dos outros, muito mais do que um texto escrito no Instagram ou noutra rede social. Tu podes escrever um texto a dizer o que tu quiseres e, no momento seguinte, sair dali, largar o telemóvel ou o computador, e fazer exatamente o oposto. Viver consoante as tuas palavras é muito forte, é muito impactante. Eu vejo, cada vez mais, mulheres em movimentos, mulheres que não têm vergonha de falar, que se empoderam umas às outras. Há um movimento de libertação entre nós todas, que eu acho que tem crescido nos últimos anos, e que é muito importante.

E quando não nos querem ouvir, como é que nos fazemos ouvir?

Quando não nos querem ouvir é muito chato, muito cansativo. Eu acho que todas as mulheres chegam ao fim do dia cansadas, mas há um extra desse cansaço que vem por causa dessa questão. É muito cansativo teres de te fazer ouvir e conseguir que te levem a sério. É muito cansativo teres de te esconder quando até gostavas de sair para o trabalho com uma blusa que tem um decote muito bonito, mas pensas: "Ah, mas se eu vestir isto não me vão levar a sério." É muito triste, isto acontecer… qual será a melhor forma? Eu não gosto de gritarias, mas às vezes chega-se a um limite... E depois chamam-nos histéricas e loucas, não é? Mas a verdade é que já não aguentamos, porque isto acontece desde muito pequeninas. O rapaz fala e é ouvido imediatamente, as meninas falam e são tontinhas, sonhadoras…

Temos de nos provar sempre a dobrar...

Sim, exatamente, sempre a dobrar. E acho que mais do que gritar, às vezes, o nosso silêncio e as nossas ações falam muito mais alto. Acho que aparecermos com as coisas feitas, e bem feitas, resulta muito mais do que um grito.

E o que é que o 25 de Abril significa para ti enquanto artista e cidadã portuguesa?

Olha... significa muito, muito mesmo. Acho que o 25 de Abril significa muito para todos nós. Enquanto artista orgulho-me muito de toda uma geração de artistas que, muitas vezes, mesmo presos e exilados, lutaram pela liberdade das pessoas do seu país. Dedicaram a sua vida no exílio, numa solidão muito sua, a lutar pela liberdade de um povo que era o seu. Acho isso tudo muito emocionante, de uma dureza e de uma clareza muito inspiradoras enquanto artista. Há uma característica nestes cantautores todos, nestas músicas, que me deixa muito contente - uma sonoridade muito portuguesa. Mesmo antes de começarem a cantar, quando se ouve aquelas músicas, percebe-se imediatamente que é música portuguesa. E depois as letras... as letras são tão boas que hoje podemos usá-las da mesma forma como arma de defesa em relação aos maus.

"A arte tem de se ir transformando, porque senão fica uma coisa muito poeirenta, que já não traduz ninguém, porque está fechado só numa época."

O poder de cantar a liberdade: Gisela João e a evolução do Fado num país livre e democrático
créditos: Sara Pinheiro

Tens ideia do ambiente cultural e musical que se vivia em Portugal?

As pessoas viviam com medo. E quem é que consegue viver, plenamente, com medo? Ninguém. É muito complicado, é muito difícil. Ao mesmo tempo, é muito interessante perceber que, mesmo assim, estas pessoas tentavam e arranjavam formas de passar a mensagem sem que o lápis azul percebesse. Eles arranjaram forma de contornar a censura para gritar a liberdade. A dificuldade fez com que essas pessoas tocassem quase a genialidade. Atualmente, as coisas são diferentes, não temos de lutar pela nossa liberdade... podemos cantar isto, escrever aquilo...  É muito interessante perceber que aquelas pessoas não tinham outra hipótese.

Muita coisa mudou após a Revolução de Abril. Como é que o Fado se transformou?

Eu acho importante destacar que é uma ideia errada dizer-se que o Fado era pró-ditadura, porque não era. Tanto não o era que há fados em que se percebe, nas entrelinhas, as duplas intenções das letras. E alegra-me muito que, nos últimos anos, o Fado se tenha tornado a canção nacional, e os jovens e as gentes tenham orgulho em dizer que gostam de fado e que o ouvem. O Fado passa nas rádios, faz parte da vida, faz parte do dia a dia dos portugueses, isso deixa-me muito feliz. Houve uma altura em que o Fado era boicotado pelas elites e até pelo povo que o criou. Deixa-me muito feliz que isso tenha sido ultrapassado e que se tenha percebido o valor deste género musical.

Como é que a música, enquanto expressão artística, reflete e vai respondendo às mudanças sociais e políticas que ocorreram em Portugal após o 25 de abril?

Eu gosto de olhar para o país como se fosse uma pessoa. Neste caso, acho que foi um crescimento natural. O 25 de Abril acontece e, de repente, Portugal volta a ser um bebé, a crescer de novo, em liberdade, sem saber o que isso era. Depois passa ali por um momento de adolescência em que só faz asneiras, nomeadamente pedir créditos a torto e a direito. Toda a gente pedia créditos e comprava duas casas, três carros, quatro vacas... E de repente, um crash económico gigante, que abana e faz tremer toda uma sociedade. Há muitas mudanças a partir daí, e é lógico que a música vai vivendo isso tudo.

É uma espécie de arquivo da memória de um tempo...

Sim. Se há coisa que a arte faz é funcionar quase como uma radiografia, um espelho do país onde ela está inserida, onde o artista se encontra, porque acaba sempre por falar daquilo que está à sua volta. Há uma evolução registada por músicos, cantores e autores que vão explicando o que é que se passa na nossa sociedade.

E como é que vês o papel do Fado na preservação dessa memória histórica?

Eu acho que o Fado sempre teve um papel muito importante. Antes da Amália começar a cantar os grandes poetas, os fados contavam histórias do cotidiano. Alfredo Marceneiro ficou conhecido por esse nome devido à sua profissão. As letras que ele escrevia eram letras que via serem vividas. O Fado, quem o cantava, eram pessoas que tinham os seus trabalhos normais, pessoas que gostavam de cantar e cujas histórias eram sempre a falar sobre a sociedade portuguesa na sua época. Isso é tão real, tão característico, que há músicas que, hoje em dia, são tão datadas que nem faz sentido serem cantadas, porque pertencem àquele período de tempo. Eu na minha carreira já tenho algumas... "A Casa da Mariquinhas", por exemplo, foi vivendo de formas diferentes, refletindo o estado do país.

Relativamente à estética, aos temas, estilos e abordagens artísticas, como é que o Fado foi evoluindo ao longo do tempo?

Acho que evoluiu numa direção natural. Foram muitos anos enfiado dentro de uma caixinha, limitado àquele espaço e maneira de ser. De repente aprendeu o que era a liberdade, começou a tocar-se com outros géneros, a fazer amigos de outros países, de outros mundos, a ser mais plural e a crescer – a transformar-se. Eu acho que faz parte. A arte tem de se ir transformando, senão fica uma coisa muito poeirenta, que já não traduz ninguém, porque está fechado só numa época.

És um dos grandes nomes do Fado Contemporâneo. Como é que a liberdade de expressão e a democratização influenciaram a música que tu interpretas e crias?

A mim influenciou-me de todas as formas e mais algumas. A minha maneira de ser, de olhar para a vida, de escolher e interpretar os poemas, não ter medo de cantar certas coisas... Eu sinto que tenho uma missão: a de defender o outro, falar pelo outro, dar voz ao outro, e isso vem da liberdade, precisamente.

Dia 24 vais estar no Cineteatro de Amarante e dia 25 no Teatro Tivoli BBVA, a celebrar precisamente a liberdade, com o espetáculo "Gisela Canta Abril". Para ti, qual é a importância de celebrar os 50 anos da democracia portuguesa a cantar os poemas da liberdade?

É muito emocionante, porque no dia 24 é o dia anterior, portanto, já vou sentir aquele friozinho na barriga, quase como se estivesse a preparar o farnel para o passeio da escola no dia seguinte. No dia 25, vou descer a Avenida da Liberdade com uma t-shirt que tem um cravo ao peito, que fiz com uma amiga minha, a Joana Caetano. Vai ser muito emocionante e vamos encontrar muita gente, afinal são 50 anos de liberdade. A seguir vou fazer teste de som, e depois vou cantar os poemas da liberdade, curiosamente na Avenida da Liberdade, acho que é tudo muito poético.

Qual é o maior desafio ao interpretar os temas relacionados com a Revolução e com a conquista da liberdade em Portugal?

Para mim, o maior desafio é que as palavras e que a mensagem dos poemas sejam o foco principal, porque elas têm a muita força. Às vezes nós andamos aqui com questões, dúvidas e problemas... às vezes, uma só frase de um poema pode acender-nos uma luz, trazer alguma lucidez. Gostava muito que isso acontecesse.

Que mensagem esperas transmitir ao público através deste espetáculo?

O que eu espero transmitir é que as pessoas percebam que a liberdade é uma coisa muito frágil, que precisa de ser defendida, que precisa de ser cantada e falada. Nós precisamos de conversar sobre a liberdade e precisamos de a defender com unhas e dentes. E repito-me: os maus não têm vergonha nenhuma de gritar aquilo que pensam e as barbaridades que querem dizer e fazer. Portanto, nós temos que gritar a liberdade.

Achas que se tem tomado a liberdade como garantida?

Na verdade, eu acho que esse foi o maior problema que existiu durante as últimas décadas. No entanto, acho que agora, aos poucos, começamos a ter consciência da sua fragilidade. Principalmente pelo que assistimos pelo mundo fora... países onde a liberdade nunca chegou. Há lugares onde gerações e gerações nunca conheceram a liberdade. Portanto, acho que as pessoas estão a começar a perceber que a liberdade está em risco, e que é preciso tomar conta dela.

Muitas pessoas dizem que "se falta cumprir Abril". O que achas que querem dizer com isto?

Falta aquilo que falávamos há pouco - igualdade e equidade. A liberdade é muito mais do que seres livre, é deixares o outro ser livre também. Eu acho que no dia em que isso acontecer, que se cumpre totalmente abril.

Veja também as entrevistas especiais para assinalar os 50 anos do 25 de Abril com Fátima Lopes, Helena Isabel, Nuno Delgado e João Paulo Diniz.