O ato de Kansas- Nebraska, uma lei aprovada pelo Congresso dos Estados Unidos da América (EUA) em 1854, é vista pelos historiadores como o rastilho que levou à eclosão da guerra civil que se prolongou entre 1861 e 1865. O novo documento, que criou os estados do Kansas e do Nebraska, também autorizava os novos territórios que fossem criados, a oeste, a determinar por voto popular se queriam entrar nos EUA como um estado onde o comércio e o trabalho escravo são legais, ou o contrário. À época, os estados esclavagistas, onde predominava uma economia assente nas grandes plantações de algodão, ficavam a sul, enquanto os chamados estados livres situavam-se a norte, caracterizados por uma economia fortemente industrializada e assente na mão-de-obra livre e remunerada.

Com a expansão para oeste do país, a lei, redigida pelo senador democrata Stephen Douglas, abriu uma brecha no velho Compromisso do Missouri, uma legislação de 1820 aprovada por políticos pró-esclavagismo e pró-abolicionismo, com o intuito de criar um equilíbrio de poder entre os estados esclavagistas e os estados livres. Acima de tudo, proibia a escravatura nas terras a oeste, tendo sido definido uma linha no mapa a partir do qual ela não poderia expandir-se.

Receando o que poderia vir a ser um desequilíbrio de poder a favor dos estados esclavagistas, quanto mais não fosse porque os novos territórios tinham lugares assegurados no Congresso e no Senado, vários opositores ao ato de Kansas-Nebraska fundaram no mesmo ano o Partido Republicano. A sua ideologia política de então, olhando para trás com os óculos de hoje, encaixa-se na do liberalismo clássico, o qual preconiza que todos são iguais à luz da lei (liberdade civil) ao mesmo tempo que defende o liberalismo económico. Estas ideias tinham ressonância no norte urbano e industrial.

Todavia, defender ideias que roçavam o abolicionismo, ou sequer falar em proibir a expansão da escravatura, era politicamente tóxico para qualquer aspirante a presidente dos EUA. Daí que nas eleições de 1856, a primeira em que os republicanos participaram, o seu candidato tenha ficado atrás do democrata James Buchanan, considerado, atualmente, um dos piores presidentes de sempre do país, devido à sua inépcia para lidar com a questão da escravatura e pouco ter feito para evitar a secessão dos estados do sul e a guerra civil que depois veio.

Entretanto, o Kansas transformou-se num local de contenda entre pró-esclavagistas e pró-abolicionistas, os quais aí afluíram em massa desde 1854. Em 1856 os donos de escravos já dominavam o território.

Mapa político dos EUA em 1856
Mapa político dos EUA em 1856. A vermelho os estados livres e a negro os estados esclavagistas. Tudo o resto era território por ocupar.

Foi então, quatro anos mais tarde, que entrou em cena Abraham Lincoln, membro do Congresso pelo estado de Illinois e um perfeito desconhecido para os eleitores estadunidenses. A sua vitória eleitoral foi uma das mais improváveis da história do país, mas marcou por completo a história dos EUA nas décadas vindouras. Lincoln não só conseguiu vencer a guerra civil em 1965 (um ano após ter sido reeleito), tendo garantido a coesão territorial dos EUA, como foi o grande responsável pela 13º Emenda Constitucional que aboliu em no mesmo ano a escravatura dentro das fronteiras do país – o jogo político de bastidores, que levou à sua promulgação por dois terços do Congresso, surge descrito de forma vívida no filme Lincoln (2012), realizado por Steven Spielberg.

O mestre da oratória sai da obscuridade e vence tudo e todos

Em 1860, Abraham Lincoln já tinha compreendido o que era preciso para conseguir chegar à presidência dos EUA: ter a imprensa do seu lado. Os jornalistas eram convidados a ir à sua casa na cidade de Springfield, no estado de Illinois, falando e interagindo com eles, isto numa época em que não era bem visto que os candidatos presidenciais fossem muito ativos a fazer campanha, quanto mais conversarem com repórteres no seu lar. Todavia, uma das grandes facetas de Lincoln era a sua enorme capacidade para criar alianças e trabalhar atrás dos bastidores, tornando-se amigo de pessoas poderosas e influentes.

Estima-se que existissem cerca de 400 jornais por todo o país, por volta de 1860, uma era de ouro para a imprensa devido a duas tecnologias revolucionárias: o telégrafo, que permitia aos jornais receber informação e publicar as notícias a uma velocidade que nunca fora vista, e a prensa de alta velocidade, capaz de imprimir páginas de jornal em larga escala e em pouco tempo.

Não obstante, também começou a crescer uma polarização cada vez maior no seio da imprensa, pois quase todas as cidades tinham, pelo menos, dois jornais, um ligado ao Partido Democrata e outro ao Partido Republicano. Em tempo de eleições, eles serviam para divulgar as ideias dos candidatos do partido a que estavam ligados.

Foi no campo de batalha mediático que Lincoln, durante as primárias republicanas para nomear o candidato à Casa Branca, começa a ganhar nome e reputação como um orador formidável, capaz de convencer a audiência com um misto de palavras que apelavam à emoção e à razão. Lincoln caiu no goto do editor do New York Tribune – jornal republicano e um dos maiores a par do democrata New York Herald –, um opositor ao esclavagismo que ajudou a popularizar os discursos do candidato. As palavras de Lincoln acabaram por ter eco a nível nacional porque, na altura, era hábito os jornais trocarem notícias entre si – o telégrafo ajudou imenso nesta partilha –, pelo que os seus discursos foram impressos um pouco por todos os EUA, com exceção dos estados do sul.

De início era um quase desconhecido, mas, em pouco tempo, até a elite de Nova Iorque sabia o seu nome de cor, cidade com enorme peso na eleição presidencial. O candidato chega a deslocar-se de Springfield até Nova Iorque, para aí discursar.

Entre 16 e 18 de maio de 1860, em Chicago, tem lugar a Convenção Nacional do Partido Republicano, com Abraham Lincoln a ser inesperadamente escolhido como candidato à presidência, muito graças a uma legião de apoiantes que acudiu ao local, gritando o seu nome tanto no interior como no exterior do prédio onde se trocavam, para cada um dos aspirantes à Casa Branca, argumentos a favor e contra. A título de curiosidade, há que salientar que Lincoln nunca esteve na convenção, tendo ficado por casa, pois fazia parte da etiqueta que os candidatos se abstivessem de marcar presença.

Avassalador no Colégio Eleitoral, apenas o suficiente no voto popular

Para a eleição presidencial desse ano, Lincoln sabia que tinha a seu favor a desunião no seio do Partido Democrata. Os democratas do sul esclavagista escolhem o seu próprio candidato, John Breckinridge, a concorrer contra o nome escolhido pelos democratas do norte, Stephen Douglas, o mesmo que foi responsável por redigir o ato de Kansas-Nebraska. O quarto candidato às presidenciais era John Bell, do Partido da União Constitucional.

A existência de dois candidatos democratas era um reflexo da divisão no país em torno da questão da escravatura. Inicialmente, o partido teve a sua convenção com delegados do norte e do sul, mas as dissensões internas vieram ao de cima e levaram à rutura. Os democratas do norte não condenavam a escravatura, mas também não a apoiavam abertamente. Já os do sul radicalizaram-se na defesa do seu modelo económico, assente na mão-de-obra escrava. Na base da divergência estava, igualmente, o tacticismo político, pois os primeiros temiam parecer demasiado indulgentes às exigências dos estados esclavagistas, o que os levaria a perder votos no norte.

Bell, por sua vez, era um candidato sulista que, apesar de ser dono de escravos, não era a favor da expansão da escravatura para outros estados, sendo igualmente contra ideia de secessão que começava a ganhar força em terras do sul, defendendo que a própria Constituição era o garante de que a escravatura seria sempre legal.

A ida às urnas para as presidenciais de 1860 ocorreu, como é costume nos EUA, na primeira terça-feira de novembro. Muito estava em jogo, incluindo o aviso dos estados do sul de que se separariam do norte caso Lincoln fosse eleito.

A 6 de novembro, Abraham Lincoln volta a surpreender e torna-se no novo inquilino da Casa Branca, arrecadando 180 votos do colégio eleitoral, muito graças à vitória em dois estados-chave: Nova Iorque, onde o vencedor arrecada 35 votos do colégio eleitoral, e a Pensilvânia, que garantia 27 votos. Atrás dele ficaram Breckinridge (72 votos), Bell (39 votos) e Douglas (12 votos).

Parece uma vitória avassaladora, mas o cenário muda de figura quando se atenta no voto popular. Afinal, Lincoln foi eleito por apenas 39,8% dos eleitores, tendo atrás Douglas (29,4%), Breckinridge (18,1%) e Bell (12,6%). Em suma, tinha 60% do eleitorado contra si.

O presidente Abraham Lincoln em 1961
O presidente Abraham Lincoln em 1961 créditos: AFP

Mesmo assim, a história fez dele um dos mais amados presidentes dos EUA. Em 1864, em plena guerra civil, foi reeleito com 55% do voto popular. No ano anterior proferiu um discurso perto do emblemático campo de batalha de Gettysburg, onde as forças do norte (o Estado federal) tinham garantido alguns meses antes, e com muito custo em vidas humanas, uma decisiva vitória sobre as do sul.

A mensagem de Lincoln, no cemitério onde estavam sepultados os que caíram em combate, e proclamada numa altura em que tinha conseguido reforçar a sua base de apoio político, cimentou a ideia de que se travava uma guerra em nome da liberdade e igualdade para todos os que vivem no território dos EUA, pelo que a abolição da escravatura era um objetivo a garantir. Além do mais, se a vitória fosse alcançada era também a democracia que ganhava, uma democracia que, conforme explicou Lincoln, assenta no “governo do povo, pelo povo e para o povo” – uma definição que se encontra em qualquer manual de teoria política, nos dias de hoje.

Abraham Lincoln acabaria por morrer ainda no cargo, vítima de assassinato em abril de 1865. Contudo, o seu legado ainda hoje vive.