Rosto marcado pelo choque emocional, na mão um copo de Bourbon com gelo, Stephen Colbert, comediante e anfitrião de um dos talk shows mais famosos dos Estados Unidos da América (EUA), repetia para as câmaras de televisão, na noite de 8 novembro de 2016, dia das últimas eleições presidenciais, o resultado que parecia marcar “o fim da racionalidade americana”. Donald Trump era o novo homem forte da nação mais poderosa do mundo.

“Um dos fatores-chave que move as pessoas são as respostas emocionais que elas sentem em relação aos políticos e aos partidos políticos”, começa por explicar Martin Rosema, psicólogo político pela Universidade de Twente, nos Países Baixos. “Se quisermos compreender o que sucede nas sondagens, por exemplo, não devemos olhar apenas para a imagem que as pessoas têm dos partidos políticos e daquilo que defendem, devemos também focar-nos nos sentimentos que estes partidos evocam nelas.”

Em eleições como as presidenciais dos EUA, “que estão mais focadas no indivíduo [no candidato], esse elemento torna-se mais importante”, continua. “Mas, mesmo neste caso, e se atentarmos na eleição que opôs Donald Trump a Hillary Clinton [em 2016], verificou-se que cerca de 90% das pessoas seguiam o partido [e o candidato que apoiavam], pelo que o pano de fundo partidário de cada candidato tem um grande impacto.”

Racionalidade e emoções. Quem manda em quem e o que acontece na prática? A investigação em teoria política, pelo menos até há algumas décadas atrás, era parca quando se tratava de estudar como operam as duas numa mesma situação. A norma era retratar as emoções como algo mau e a racionalidade o ideal a atingir, sendo esta última responsável por controlar ou eliminar as emoções. Platão, no período áureo da Grécia Antiga, há quase 2400 anos, ruminava que para se tomarem boas decisões, quando se governa, é preciso que nos livremos da influência das emoções.

Em pleno século XVII, por sua vez, quando o Iluminismo começava a sua marcha triunfante, o filósofo Baruch Espinoza, radicado nos Países Baixos e oriundo de uma família judaica portuguesa que fugiu da Santa Inquisição, já defendia que o ser humano não conseguia desligar as emoções e, em seguida, agir de forma plenamente racional. O seu argumento era o de que podemos aprender a entender a nossas emoções o melhor possível, o que permite limitar as hipóteses de sermos guiados por elas de forma involuntária e ter um comportamento que não é aquele que realmente queremos: ou seja, eliminá-las ou controlá-las não pode estar no menu.

O neurocientista português António Damásio, mundialmente famoso no século XXI pelos seus estudos e livros sobre o cérebro e as emoções humanas, tem vindo a defender que as emoções são uma base para aquilo a que chamamos de decisões racionais.

António Damásio na inauguração da Escola Secundária com o seu nome
"O Erro de Descartes", "O Sentimento de Si" e "Ao Encontro de Espinosa", publicados entre 2000 e 2003, contam-se entre os livros de maior sucesso do neurocientista António Damásio Miguel A. Lopes/Lusa

“Nas últimas décadas, as pesquisas em muitas e diferentes áreas mostraram que a racionalidade e as emoções estão interligadas, sendo que as neurociências desempenharam aqui um grande papel”, salienta Martin Rosema.

Mais. “Se definirmos as emoções como um sentimento visceral, instintivo, e a racionalidade como algo que se foca nas preferências políticas de partidos, candidatos ou dos cidadãos”, a conclusão a que muitas investigações chegaram, explica o investigador neerlandês, é que “as pessoas têm tendência a seguir o seu coração, as suas emoções”. Não obstante, “também se descobriu que para muitas pessoas não há aqui qualquer contradição: os partidos e candidatos com posições políticas que mais se aproximem das de uma pessoa são também os que lhe transmitem uma emoção positiva, existindo uma mesma correlação entre sentimentos negativos e posições políticas mais afastadas”.

Em suma. Numa eleição, podemos ser inundados por todo o tipo de informação sobre as políticas defendidas por cada candidato, e, neste caso, os partidários da racionalidade dizem para votarmos no partido ou candidato cuja agenda se aproxima mais das nossas preferências. Mas a verdade é que os seres humanos podem sentir algo positivo em relação a um candidato, uma sensação de proximidade e empatia, por exemplo, ou podem também ser afetados por sentimentos negativos, como raiva e antipatia.

Num comício de Trump ‘cozinham-se’ emoções em tempo real

Com a pandemia em pano de fundo, temos agora uma nova luta pela Casa Branca e um ainda Presidente dos EUA diagnosticado com Covid-19. Apesar da liderança considerável do candidato Joe Biden nas sondagens, com a média das mais recentes a dar-lhe uma vantagem de onze pontos percentuais – dados de 7 de Outubro –, o sistema de colégio eleitoral pode sempre ditar um outro vencedor que não o do voto popular: foi o que sucedeu, já neste milénio, em 2016, precisamente com Trump, e em 2001, com George W. Bush.

Não sendo de excluir, portanto, este último cenário, ainda é com condescendência e perplexidade que muitos norte-americanos olham para o que consideram ser o exemplo perfeito da irracionalidade: votar em Donald Trump. Todavia, o que não faltam são estudos a alertar para o perigo de uma análise redutora e simplista dos seus apoiantes.

Num artigo publicado antes de Trump ter ganho as presidenciais de 2016, e posteriormente reeditado pela revista Scientific American, os psicólogos Stephen Reicher e Alexander Haslam explicaram como é que este homem de negócios, e figura do espetáculo televisivo, usou com perícia alguns dos princípios da psicologia de grupo. Um dos exemplos foram os seus famosos comícios políticos, os quais, segundos os dois investigadores, eram “festivais” que conseguiam criar um sentimento de identidade comum entre quem marcava presença. De que forma?

“Um comício começava muito antes de Trump chegar. De facto, a longa espera pelo líder era uma parte da performance. Este atraso encenado afetava a auto-perceção dos membros do público («Se estou preparado para esperar tanto tempo, este evento e este líder devem ser importantes para mim»). Afetava as formas como os membros do público viam-se uns aos outros («Se outros estão preparados para esperar tanto tempo, este evento e o líder devem ser importantes para eles»). E assim estabelecia um padrão de devoção na multidão e um sentimento de identidade partilhada entre os membros da multidão («Nós estamos juntos na nossa devoção a este movimento»)”, observaram Reicher e Haslam.

O atraso propositado de Trump abria ainda portas, explicam, a outros “atos rituais que ajudavam a moldar a visão do mundo do público”. Os procedimentos de segurança nos comícios, bastante mais rigorosos que os dos outros candidatos, faziam parte da encenação, com agentes de segurança em abundância e espalhados pelo recinto, mantendo-se bem visíveis, de costas para o palco onde Trump discursaria e, “propositadamente”, mantendo um contacto nos olhos com os membros do público, em busca de intrusos. “Membros do público entravam no exercício. Uma pessoa não precisava de expressar abertamente a sua oposição para ser considerada suspeita; apenas não mostrar entusiasmo suficiente podia atrair a atenção hostil de outras pessoas.”

Os altifalantes avisavam a multidão para não tocar em possíveis protestantes que detetassem, instruindo-os, antes, a notificar os seguranças gritando ‘Trump! Trump! Trump!’. Apesar de quase sempre serem falsos alarmes, os gritos faziam-se ouvir repetidamente. “Quando acontecia, todo o público era alertado para possíveis inimigos no seu seio. Como resultado destas variadas táticas, os membros da multidão eram induzidos a agir como se estivessem sob ameaça: observar eles próprios, e os outros, a comportar-se deste modo apenas servia para reforçar a presunção de que estavam realmente sob ameaça, de inimigos tanto lá fora como lá dentro”. Basicamente, as pessoas que assistiam ao comício e os seguranças agiam como se fossem uma “comunidade sob ameaça”.

Os famosos comícios de Donald Trump são "festivais" onde diversas encenações ajudam a criar um sentimento de identidade comum entre quem marca presença.

Esta encenação, que conduzia a um sentimento percebido de ameaça, nunca foi um mero acaso. Várias características comuns podem ser observadas nos apoiantes de Trump, salientam Reicher e Haslam. Além de uma falta de confiança na política, nos políticos e nas instituições políticas, os seus seguidores são, tradicionalmente, pessoas que perderam o comboio da transição económica nos Estados Unidos, de uma indústria manufatureira para uma outra mais diversa, global e assente na informação. Trata-se de norte-americanos que fazem parte de um setor da economia em declínio, afetado por acordos de comércio-livre e pela competição dos produtos de baixo-custo, produzidos noutras partes do mundo. O sentimento de ameaça ao seu modo de vida, uma ameaça que entendem como vinda do interior do país e de fora, parece, assim, ser um elemento que os identifica e une.

Raiva é mais eficaz que o medo a mudar comportamentos

Também há muito a dizer sobre a importância do medo no contexto político, tal como descobriu o norte-americano George Marcus, um dos grandes nomes atuais da psicologia política. Segundo ele, se a pessoas se sentirem preocupadas e tiverem medo de algo, procurarão mais informação, sobre um candidato ou partido, por exemplo. À primeira vista, e para os que defendem que devemos agir de forma racional e tomar decisões com base em informação, este comportamento parece fazer todo o sentido.

No entanto, o medo pode ser usado para atingir outros fins menos nobres, embora os políticos estejam a usar uma outra emoção para suscitar mudanças de comportamento nas pessoas.“Se estivermos a seguir o que sucede nas redes sociais [digitais] e aquilo que os políticos fazem, vemos que eles não estão só a explorar o medo, que é algo que já fazem há muito tempo, enfatizando o medo em relação aos estrangeiros ou dos desastres ambientais. Os políticos estão também a tentar evocar a raiva para com o Governo, isto quando se encontram na oposição, o que pode ter um verdadeiro impacto motivacional.”

Vamos mais longe. Medo e raiva são duas emoções negativas, mas a raiva pode ter efeitos diferentes dos do medo, e isso é algo que Martin Rosema verificou numa linha de pesquisas em que está envolvido e que faz uso de imagens do cérebro obtidas por ressonância magnética. Os resultados provisórios com esta técnica de imagiologia, em testes no qual se pede a uma pessoa para refletir nas emoções que sente enquanto vê vídeos sobre temas políticos relevantes – verificando-se, em tempo real, que áreas do seu cérebro são ativadas –, parecem indicar que a raiva tem um impacto muito mais motivacional que o medo, o que está em linha com as conclusões de outros e diferentes estudos, frisa. Dito de outra forma, a raiva é uma emoção com maior capacidade de nos levar a ter determinados tipos de comportamento que o medo.

“Estamos verdadeiramente zangados, ou disseram-nos que estamos?”

Manos Tsakiris, investigador na área da psicologia pela Universidade Royal Holloway de Londres, no ensaio A Política é Visceral, publicado na revista Aeon, levanta uma questão pertinente. Se tivermos em conta, como referem as novas teorias sobre as emoções, que estas são construções que se fazem do mundo, e não reações a ele, “conseguirá a linguagem emocional tornar-se autorrealizável”, ou, como melhor explica, “conseguirá a linguagem construir a experiência de raiva ou medo que está a descrever?”

Uma questão em aberto, refere Tsakiris, mas importante de se resolver nos tempos atuais e pelos seguintes motivos: “É vital perceber como é que estados fisiológicos, emparelhados com diferenças individuais nas atitudes políticas, podem predispor algumas pessoas a sentir raiva num determinado contexto sociopolítico, enquanto outros podem sentir medo ou ansiedade. Além do mais, a pergunta sobre quais as exatas emoções que as pessoas estão mesmo a sentir mantém-se empiricamente sub-investigada ou, na melhor das hipóteses, ingenuamente investigada”.

O pedido de resposta à última pergunta não pode igualmente ser menosprezado. Em causa está a linguagem política que é hoje usada, “saturada pela emoção”, como salienta o psicólogo grego no seu ensaio, ao mesmo tempo que vivemos numa era em que nos sentimos ameaçados pela “pandemia, as alterações climáticas, o assalto sexual, o racismo sistémico, as pressões dos empregos da gig economy, a crise da democracial liberal”, fenómenos que “criam sentimentos de vulnerabilidade que são, bastante literalmente, viscerais”.

É dentro deste contexto que os políticos, face à dificuldade que temos em discernir o que realmente sentimos – apesar de pensarmos que sim, diz Tsakiris –, tentam associar determinados estados fisiológicos que as pessoas sentem, como o stress, a uma emoção, por eles evocada como a que é sentida. “Consideremos a raiva: estamos verdadeiramente zangados, ou disseram-nos que estamos?"

Nojo e entusiasmo, emoções ao rubro no movimento #MeToo

Para Martin Rosima é difícil dizer se a linguagem política está demasiada saturada com a emoção, mas não tem dúvidas de que o seu uso pelos políticos “tanto pode ter consequências positivas como negativas, dependendo de como é usada e para que fins”. A um nível mais fundamental, acredita que para se conseguir uma boa tomada de decisões as emoções têm de fazer parte desse processo. “Muitas coisas boas podem vir quando o discurso político é emocional. O movimento #MeToo, visto por muitos como algo bom, por ter posto na agenda o problema do abuso sexual de mulheres, foi movido pela emoção, pelo sentimento de nojo e raiva. Mas também foi movido pelo sentimento de entusiasmo, quando a situação começou a mudar. É um exemplo.”

Contudo, fica o aviso: “As emoções são um elemento vital e podem ser úteis, mas se são só elas a ditar as decisões e se isso implica que não se pense nas consequências de longo prazo, apenas nos ganhos imediatos, então algo mau poderá suceder”.