
"Não estou otimista em relação a uma solução militar, enquanto o discurso oficial não for enfático em relação à raiz sociológica do conflito em Cabo Delgado", disse João Feijó, investigador do Observatório do Meio Rural (OMR), organização da sociedade civil moçambicana e com estudos sobre a guerra na província.
O Ruanda começou na sexta-feira a enviar militares e polícias para o combate à insurgência na província de Cabo Delgado, norte de Moçambique, no âmbito de uma missão composta por mil homens.
Espera-se também o destacamento de uma força militar da Comunidade de Desenvolvimento da África Austral (SADC) para o teatro de operações naquela província.
João Feijó entende que a presença de um contingente do Ruanda e o destacamento de uma força da SADC parecem visar a proteção dos interesses das multinacionais envolvidas nos projetos de gás natural na bacia do Rovuma, o que poderá resultar "num enclave petrolífero".
"Se o mandato dessas forças for a proteção de projetos de gás, embora não declarado, teremos ali um enclave petrolífero e com um perímetro maior inacessível para a população, que ficará desprotegida", afirmou.
A intervenção militar, prosseguiu, deve decorrer em paralelo com ações de desenvolvimento social e económico decisivas, que ofereçam oportunidades e esperança aos jovens.
"Há na região milhares de jovens desempregados e humilhados pelo Estado, que são presa fácil para o recrutamento por grupos armados", assinalou o investigador do OMR.
Por outro lado, continuou, levantam-se dúvidas sobre o sucesso de ações militares conduzidas por exércitos convencionais numa "guerra assimétrica contra grupos de guerrilheiros que facilmente se misturam com a população", como acontece em Cabo Delgado.
João Feijó enfatizou que o combate à insurgência poderá ser uma guerra prolongada e de paciência, com riscos de gerar mais ciclos de violência e abusos sobre direitos humanos.
Adriano Nuvunga, politólogo e diretor do Centro para a Democracia e Desenvolvimento (CDD), também alertou para "a militarização do perímetro dos grandes projetos de gás natural e a contínua desproteção das populações, caso a intervenção militar não seja feita com um impulso no desenvolvimento social".
"Não é suficiente oferecer a via militar à população de Cabo Delgado sem proporcionar desenvolvimento, porque a semente da revolta vai continuar e vai germinar, logo que o terreno permitir essa explosão", considerou Nuvunga.
A Agência de Desenvolvimento Integrado do Norte (ADIN), uma entidade estatal, deve começar a produzir resultados palpáveis, principalmente na criação de emprego e formação de jovens, para que o espírito de revolta não se multiplique, defendeu.
"A ajuda militar estrangeira não é eterna, mas a revolta passa de geração em geração e continua, quando as causas não forem atacadas", destacou.
Adriano Nuvunga, que é também docente universitário, alertou para o risco de "confusão operacional e dificuldades de coordenação" das forças estrangeiras no terreno, "caso essa relação não seja devidamente definida".
"Que tipo de relação haverá entre a força do Ruanda e a força da SADC? Será de tipo vertical, com subordinação, ou em igualdade de circunstâncias?", questionou.
Fernando Lima, jornalista e presidente do grupo de 'media' privado Mediacoop, também notou o perigo de criação de um "enclave petrolífero" cercado de "uma população flagelada pela violência", caso a ação militar negligencie a restauração da estabilidade em todas as zonas afetadas pela ação de grupos armados.
"A necessidade de ajuda militar internacional contra o extremismo em Cabo Delgado é indeclinável, mas também é necessário romper com o ciclo de miséria abjeta que flagela uma terra potencialmente rica em recursos naturais", enfatizou Lima.
O Governo, prosseguiu, não deve persistir no erro de ignorar as causas profundas e locais do conflito em Cabo Delgado, apostando na aceleração de iniciativas de criação de emprego, formação profissional e geração de rendimentos das comunidades.
"Para já, a intervenção militar estrangeira será importante para permitir a reconquista de terreno nas mãos dos rebeldes, de modo a colocá-los na defensiva, enquanto o Exército moçambicano é melhor treinado para ficar com a defesa da província de Cabo Delgado, mas o desenvolvimento social e económico é uma necessidade urgente", frisou Fernando Lima.
Grupos armados aterrorizam a província de Cabo Delgado desde 2017, sendo alguns ataques reclamados pelo grupo Estado Islâmico.
Há mais de 2.800 mortes segundo o projeto de registo de conflitos ACLED e 732.000 deslocados de acordo com as Nações Unidas.
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