
Era uma vez uma fábrica de cerâmica em ruínas. Fundada em 1897 por José Joaquim Almeida Junça para fazer tijolos de burro, azulejos e artigos decorativos, foi instalada na rua João Chagas, que ligava Algés a Linda-a-Velha, por ter ao lado, na encosta que beirava a estrada antiga, a Barreira, de onde se extraía calcário, saibro e toda a argila necessária para produzir a telha, telhão, tijolo e afins, que eram então de grande procura. Foi ali, na Cerâmica Montargila, renovada e ampliada em 1906, que um casal da Beira Baixa chegou à procura de uma vida melhor no calor dos fornos de cozer barro, procurando morada na vizinha Dr. António Granjo.
Os tempos e os novos métodos de construção fechariam a fábrica décadas mais tarde, os herdeiros viriam a esquecer o edifício, que foi caindo num prolongado e triste processo de degradação. E nada faria antecipar que aquele casal beirão, igual a tantos outros funcionários da Montargila, viria a ter um papel na história do local. Ricardo, nascido quase 100 anos depois de a fábrica ter sido levantada e sentindo a ligação emocional passada pelos avós, em cuja companhia e histórias se demorava com prazer, tendo crescido a ouvir-lhes os relatos de quando aquele era um local de prosperidade, soube que a antiga cerâmica, agora classificada como Património do Concelho de Oeiras mas desgastada pelos anos e maus tratos do abandono, seria leiloada em breve. E tentou a sua sorte.

Quis o destino que a ligação dos Silva Marques à fachada de tijolo vermelho tornasse a fazer-se forte. Em 2017, Ricardo, médico cirurgião dentista cuja carreira já levara ao Brasil, a Miami e a Genève, vencia o leilão da CGD e tinha em mãos a oportunidade de fazer viver o sonho: recuperar a antiga Montargila, transformando-a num polo cultural vibrante e aberto à comunidade a viver em perfeita sintonia com a sua prática médica. E assim, se fez a Le Art Clinic.
"Foi uma alegria enorme saber que tinha conseguido", conta ao SAPO, explicando que a ideia de reabilitar o edifício com uma componente cultural decorreu não apenas da dimensão do espaço — um terreno de 700 metros quadrados, metade licenciados para construção, que sobejava para o que precisava, mesmo expandindo a clínica, como vem fazendo — mas sobretudo da sua vontade de ajudar a dar vida a uma proposta que ligasse a arte às pessoas, que fizesse a comunidade voltar a poder viver um local que mais de 100 anos antes lhe dera uma vida.
"Eu faço questão de dar o meu cunho pessoal a tudo aquilo em que me meto e a arte urbana é algo que sempre apreciei", explica, para justificar a ideia que se começou a formar imediatamente assim que a reabilitação se tornou realidade: convidas os melhores artistas para se juntarem ao projeto e ali fazerem intervenções. À primeira tentativa, conseguiu o ouro. "Nunca pensei que ela aceitasse, mas logo que contactei a Joana Vasconcelos, por cuja arte me tinha apaixonado ao visitar a sua obra em Versailles, ela disse que sim. Porque mora perto, ela também tinha uma ligação à fábrica e juntou-se imediatamente e com entusiasmo, o que acabou por ser uma âncora incrível para conseguir captar outros artistas", revela Ricardo Silva Marques ao SAPO, sobre as origens da Le Art Clinic.

Atrás do painel de azulejos de 42m2 ali assinado por Joana Vasconcelos em 2023, o primeiro na Viúva Lamego a apresentar fibra ótica, o que permite que seja apreciada também de noite, vieram muitos outros, incluindo o Galo Monumental de Bordalo II no jardim, o mural de azulejo Saudade, de ADD Fuel (Diogo Machado) e painéis especialmente desenhados para o local por um Pritzker, Álvaro Siza, e pelo Mestre Manuel Cargaleiro. Há ainda a mais emocional obra de arte para quem sente tão profundamente esta ligação à família: a imagem dos avós de Ricardo, imortalizada pelo escopo e martelo de Vihls (Alexandre Farto) numa das paredes interiores do espaço.

"Tenho-me divertido imenso a montar isto, a fazer ai um polo de artistas que desperte a atenção das pessoas e devolva o espaço à comunidade", conta ao SAPO o médico que é também um verdadeiro empreendedor. Basta ver que Ricardo Silva Marques tem uma patente desenvolvida para a area da estética dentária, em que se especializou, que permite colocar vários dentes em 24 horas, e que lhe garante um leque generoso de clientes que vêm de fora para ali receber cuidados. E que se encantam não só com o resultado dos tratamentos como com o ambiente da clínica e a sua inserção perfeita na comunidade.

Esta abertura, a que Ricardo Silva Marques vai acrescentando valor desde que se inaugurou o espaço, em 2023, traduz-se em muito mais do que permitir que qualquer pessoa, seu cliente ou mero curioso, visite e usufrua do espaço da Le Art Clinic. "A ideia é que isto seja uma experiência", explica, para exemplificar com o Le Art Festival, que já teve um par de edições e ali levou a palco artistas como Tony Carreira ou Carminho, ou com os sunsets que ali têm lugar, às últimas quintas-feiras do mês, tudo sempre de entrada livre (mediante inscrição por questões de lotação). "Quis devolver à comunidade e as pessoas têm gostado imenso", diz, para depois adiantar que ali vai abrir em breve um sushi bar, projeto idealizado por um brasileiro que já conquistou duas estrelas Michelin em S. Paulo e que ali juntará a sua arte, desta feita gastronómica, num formato omakase (balcão para oito pessoas em que o chef decide o que os clientes comem).
Escusado será dizer que toda a boa vontade e melhores ideias não se cumprem de graça e Ricardo Silva Marques já soma ali um investimento muito considerável — "entre a aquisição do espaço, a reabilitação, a arte e o equipamento da clínica, já vai em 3,65 milhões de euros", concretiza —, tendo a clínica como mecenas e prevendo abrir a breve trecho o mecenato a outras instituições. "Gostava que vissem que se pode fazer uma reabilitação destas, recuperar património público e explorá-lo economicamente ao mesmo tempo que se trabalha a sustentabilidade, garantindo que a comunidade pode usufruir dele."

Enquanto o mecenato está circunscrito à Le Art Clinic e a Ricardo, o médico e curador tem feito por criar condições para manter um negócio economicamente viável, com as 15 pessoas que já integram a clínica dentária a garantir um serviço internacionalizado - tem clientes regulares que vêm da Suíça, do Luxemburgo, do Reino Unido e dos Estados Unidos, entre outros países - e acrescentando novas valências à clínica, como o spa e estética que fez nascer no primeiro piso. É isso que lhe permite também continuar a ter capacidade de acrescentar valor cultural a projeto, o que passou inclusivamente pela profissionalização da gestão artística do espaço e a capacidade adquirida de concorrer a fundos europeus (PT2020 e PT2030) para ganhar solidez.
"Este espaço vai muito para além de uma clínica", descreve Ricardo também no livro que fez a parir do primeiro Le Art Festival. "As nossas portas estarão sempre abertas a todos os que desejam explorar a arte e a cultura", afirma, prometendo trazer ainda exposições e workshops, entre mais oferta cultural que inspire a comunidade. E que mais ideias tem Ricardo Silva Marques na cabeça? "Há um sonho aguardar tornar-se realidade: a Fundação Zulmira Marques, para honrar o legado da minha mãe, uma verdadeira cuidadora, associando o seu nome a algo que continue a promover artistas nacionais, a inspirar gerações mais jovens a aprender e ajudar a mudar vidas."