
O secretário do Tesouro dos Estados Unidos, Scott Bessent, anunciou recentemente uma reforma da atividade bancária no país, que cortará com as regras criadas após a crise financeira de 2007-2008. Nomeadamente, os EUA não irão cumprir o Acordo de Basileia III, que obriga os bancos e outras instituições de crédito a manterem um nível suficiente de fundos próprios e de liquidez para cumprirem as suas obrigações e absorverem perdas inesperadas.
O principal objetivo das normas internacionais criadas pelo Comité de Basileia é aumentar a solidez e a resiliência dos bancos, reduzindo a probabilidade de colapsos financeiros sistémicos. Obriga os bancos a um aumento dos requisitos de capital mínimo e de melhor qualidade; introduz índices de liquidez, para garantir que os bancos mantenham recursos suficientes para enfrentar choques de curto e longo prazo; e cria um índice de alavancagem máxima para limitar o excesso de endividamento dos bancos em relação ao seu capital.
Tratando-se de um setor altamente conectado e interdependente, António Nogueira Leite, economista e professor na Nova SBE, dá conta ao Jornal PT50 do impacto que esta decisão pode ter no setor bancário a nível global. Mas não só, destaca como a política de desregulamentação da administração de Donald Trump pode acarretar mais riscos e contágios, nomeadamente por introduzir no sistema um elemento novo, como as criptomoedas e as ‘stablecoins’, com elevadas características de volatilidade. Para Nogueira Leite, a união bancária será a resposta para fortalecer o setor bancário europeu.
De que forma esta decisão de os EUA abandonarem o Acordo de Basileia pode afetar a estabilidade financeira no país a médio e longo prazo?
Eles querem abandonar as decisões que vêm de trás, nomeadamente três aspetos. Os requisitos de capital, que foram sendo aumentados ao longo do tempo, os índices de liquidez, que é o Liquidity Coverage Ratio e o Net Stable Funding Ratio, que são supervisionados pelas entidades de supervisão. E depois os limites de alavancagem que os bancos podem ter. Isso foi feito para mitigar o risco sistémico, para prevenir corridas aos bancos e para que os bancos possam resistir melhor aos choques económicos. Basicamente, ao sair do Basileia, esses requisitos deixam de ser cumpridos. O Scott Bessent tem dito que levam a grandes reservas de capital e afetações de ativos de alta qualidade, que acabam por reduzir as disponibilidades de financiamento, portanto, a capacidade de os bancos estimularem a economia através do crédito.
Mas todos cumprem as mesmas regras.
O que ele está a dizer é que na América acham que isto é demais e, portanto, não querem. Não é só uma posição concorrencial com os outros bancos. É para que, em termos absolutos, nos Estados Unidos, para a infraestrutura e superestrutura que está montada, possa haver mais crédito. E como é que ele vê isso? Retirando os requisitos de Basileia.
Para injetar mais liquidez no mercado?
Potencialmente. Já vimos isto correr mal no passado. Portanto, basicamente quer rever as reservas de capital para os grandes bancos. O outro aspeto que ele também quer rever é reduzir as barreiras regulatórias para as tecnologias financeiras, como as ‘stablecoins’ e o ‘blockchain’. Considera que com menos regulação vai fomentar a inovação e o crescimento económico. Eu penso que aqui podemos ter problemas. Primeiro, os bancos com menos capital são necessariamente menos resilientes, nomeadamente, quando surgem eventos que os impactam negativamente. Esta ideia dos últimos 15 anos de criar bancos mais resilientes, é evidente que tem um custo em termos da expansão da sua atividade, mas a ideia é que se tivermos um sistema mais resiliente teremos menos problemas se um dia as coisas não correrem bem na economia. O custo do sistema mais estável é ele ser menos elástico.
Outro aspecto é que, ao relaxar os rácios de liquidez, pode expor os bancos a crises de liquidez, nomeadamente em situações de stress. Recorde-se um caso recente nos Estados Unidos com o Silicon Valley Bank (SVB). Nos Estados Unidos, até agora, os bancos maiores são bastante regulados, mas os bancos imediatamente a seguir são muito menos regulados. Foi exatamente nessa segunda categoria de bancos que problemas aconteceram, e o SVB foi só o primeiro.
São esses os dois pontos que identifica?
Vou-lhe dar mais um. É a questão do risco moral. Dizem que o governo pode conviver com rácios mais baixos, porque se houver algum problema o governo intervém. Isso cria aquilo a que nós chamamos de risco moral, quer dizer, as pessoas vão ter comportamentos mais arriscados, porque sabem que no fim há um ‘bail out’.
Alguém vai salvar.
Exatamente. Agrava a situação.
Então, ao voltar-se atrás, pode abrir-se espaço para riscos sistémicos semelhantes aos que causaram a crise de 2007-2008? E contagiar a Europa e o resto do mundo?
Exatamente, a questão é essa. Isto acaba por ter consequências. Qual foi a razão da crise de 2007? Foi excesso de alavancagem. O que ele [Scott Bessent] está a dizer agora é que vai ter rácios que permitam uma alavancagem maior do que a que os bancos têm hoje. Não estou a dizer que voltam aos níveis de 2007, mas é na direção da situação pré-crise. As situações de falta de liquidez também passam a ter uma probabilidade maior de ocorrerem perante o mesmo fenómeno adverso, porque os bancos estão menos defendidos em termos de liquidez e em termos de capital.
Por outro lado, se não regular bem os produtos, tendo em conta que vai expandir a ‘blockchain’ e as ‘stablecoins’ – nada contra – têm que olhar para isso com alguma atenção, porque são produtos que poderão ficar no balanço dos bancos. E foi por haver má regulação dos derivados, nomeadamente os CDO e os “credit default swaps’, que nós amplificámos os riscos da crise de 2008.
Ou seja, estão a introduzir um elemento novo e não se sabe a extensão do que este elemento novo pode causar?
Exatamente. A proposta é baixar as barreiras regulatórias para ‘blockchain’ e ‘stablecoins’. Mas podemos ter aqui riscos sistémicos, se isto não for bem interpretado e bem regulado, porque os criptos são muito voláteis e suscetíveis a fraude, são suscetíveis a colapsos. Tivemos o caso da Terra Luna em 2022, só para dar um exemplo. Portanto, sem um arcabouço regulatório minimamente robusto, nós podemos estar a impor por essa via um risco adicional ao sistema.
Que impacto é que isto pode ter no setor bancário europeu? Os bancos poderão exigir mudanças regulatórias semelhantes na UE, visando competir em igualdade com os bancos norte-americanos?
Pode ter impacto por várias vias. A primeira é a via dos mercados. Porque maiores incidências de capital e liquidez, em geral, significam maior risco no balanço dos bancos, portanto, em situações adversas, mais volatilidade. Por outro lado, como a desregulação cria uma vantagem competitiva, pelo menos no curto e médio prazo, isso vai fazer com que possa haver uma ‘race to the bottom’ regulatória, ou seja, as associações de bancos na Europa vão pressionar para que as regras sejam aliviadas na Europa, porque os bancos europeus concorrem diretamente com os bancos americanos.
Aliás, já se ouve isso. Vários banqueiros dizem que temos demasiada regulação na Europa e que estes requisitos de capital são um exagero.
Exatamente. Por outro lado, também aumenta o risco nos criptoativos. Porque a redução das barreiras para atividades de ‘blockchain’ e ‘stablecoins’, se não for devidamente regulada, tem impacto nos mercados financeiros globais, porque essas são alternativas de investimento. Portanto, se não forem bem tratadas, há sempre efeito externo de qualquer coisa que possa correr menos bem.
Por outro lado, temos uma pressão competitiva. Se as instituições europeias e nacionais não cederem, os bancos europeus podem perder participação no mercado porque vão assumir menos risco que os americanos, por causa do custo regulatório mais elevado. E se acederem, temos mais volatilidade, mais risco, portanto, mais chances de termos problemas se houver algum fenómeno negativo importante. E podemos pensar em muitos, da maneira em que o mundo está.
Ou seja, aqui tenho a posição de que nós não devemos entrar numa corrida com os americanos para ver quem desregulamenta mais. Acho que às vezes se vai um pouco longe demais na supervisão bancária, mas ela existe por uma razão, que foi o que aprendemos com a crise de 2007 e depois em 2011-2013. Portanto, deitar fora todo esse conhecimento e as precauções que tomámos parece-me um risco que não deveria ser tomado.
Então qual é sua posição em relação à Europa?
Eu acho que devemos, no mínimo, manter o Basileia III e ir implementando o Basileia IV. Mas o Basileia IV tem que ser implementado em todos os países europeus, porque temos que fortalecer a união bancária, e aqui é crucial que haja capacidade política de criar o sistema europeu de garantia de depósitos, que é essencial para mitigar o impacto dos choques. Um dos mandatos da comissária Maria Luísa Albuquerque é trabalhar nisso. Também já foi assumido pela presidente Von der Leyen e acho que está corretíssimo. Nós precisamos de ter um mercado único bancário. Depois temos que supervisionar e regular os mercados de criptoativos, que é bom que se desenvolvam, mas não se podem desenvolver de uma maneira em que os riscos não sejam mensuráveis, nem geríveis. E há um outro aspeto adicional, se não houver de facto regulação nos Estados Unidos, tem que haver cuidado na monitorização da exposição dos bancos europeus e das sociedades de investimento europeias e das companhias de seguros europeias ao risco de títulos relativos a bancos americanos.
E esta desregulamentação pode levar ao enfraquecimento do Basileia à escala global? Há risco de um efeito dominó regulatório?
Vai haver muita pressão e é necessária mais vontade política. Para a saúde do sistema era importante que as diversas partes, nomeadamente os países que não os Estados Unidos, as mantivessem. Mesmo sabendo que basta os Estados Unidos não as terem para o risco global aumentar dada a importância do sistema financeiro americano. Acho que, na Europa, não devemos ir atrás desta evolução americana sob pena de criarmos condições para surpresas desagradáveis. Portanto, devemos tentar ter um sistema com uma supervisão adequada. Admito que aqui e ali se possa aliviar alguma coisa. Basta falar com as administrações dos bancos para perceber o custo brutal que a supervisão tem hoje em dia. Mas os princípios gerais e as regras são importantes que se mantenham.
Estava a falar que é preciso vontade política. Que papel é que pode desempenhar o Banco Central Europeu, os bancos centrais de cada país, organizações, associações, na atenuação dos efeitos negativos que isto pode vir a trazer à banca?
Acho que a fragmentação geopolítica que estamos a ver está a facilitar o ataque aos sistemas globais e o Basileia é um sistema global. Para mim, a melhor forma de o fazer é manter com inteligência aquilo que são os principais requisitos que estão neste momento em vigor. E esperar que isso seja suficiente caso ocorra algo negativo do lado americano. E qual é a contrapartida que oferecemos aos europeus? É, de facto, a Comissão e os Estados trabalharem numa verdadeira união bancária. Porque nós continuamos a ter um sistema altamente fragmentado. Se tivermos uma verdadeira união bancária podemos ter mais concorrência, mais liquidez, sem que cada entidade em si tenha maior fragilidade regulatória do que atualmente.
O que é necessário para isso acontecer?
Precisamos que haja a possibilidade de as empresas portuguesas terem acesso a ofertas para além da oferta dos bancos portugueses. Após 25 anos de euro, não há um mercado europeu de crédito para entidades que não grandes empresas. Também não há um mercado europeu de capitais integrado, portanto, é aí que precisamos de investir. Temos que trabalhar num aprofundamento do sistema para que elimine as desvantagens que temos em relação a sistemas integrados como o dos Estados Unidos, por exemplo.
Para que uma empresa em Portugal possa fazer um crédito em França, por exemplo?
Ela pode, só que a oferta não existe. Quer dizer, um banco francês está disponível para financiar uma Brisa, uma Sonae, uma Jerónimo Martins, mas não está disponível para financiar uma PME, a não ser que esteja a atuar em Portugal. Portanto, a ideia é criar mecanismos que tornem o sistema mais transparente, mais visível e mais integrado. Permitir também que não se utilize o argumento de o Unicrédito não poder comprar o Commerzbank, porque o Commerzbank é que tem relação com as empresas alemãs. Ora, se ele está a comprar não é para perder o mercado alemão, não é? Temos um mercado muito regionalizado, muito segmentado. As regras não o impedem, mas a prática faz com que só os grandes é que estejam realmente num mercado único. Os outros estão nos mercados regionais.
E os ‘players’ estão dispostos a perder o seu poder nesses mercados?
Não, muitos não estão. Mas isto tem que avançar, porque para o conjunto da economia é melhor que avance. É preciso, por outro lado, que os europeus falem com os reguladores dos mercados emergentes – do Brasil, da Índia – para que eles não sigam os americanos.
Nestas circunstâncias, o que é importante é que o número máximo de jurisdições onde neste momento existem regras se mantenha, porque quantos mais seguirem a desregulamentação, maior é o risco também para os que não desregulamentam. São afetados pelas externalidades.
Não há forma de garantir a competitividade dos bancos sem pôr em causa esta estabilidade dada pelas regras?
Acho que sim. A justificação do secretário do Tesouro americano quase que faz mais sentido na Europa, porque eles, para além dos bancos, têm todo um sistema de mercado de capitais muito mais profundo e que financia muito melhor a economia do que os nossos. O problema dos Estados Unidos não é o financiamento da economia americana. Os mercados de capitais americanos são muito desenvolvidos e todo o tipo de capital é muito abundante lá.
Mas pode haver aqui um custo grande de instabilidade no sistema financeiro internacional e, por isso, os europeus têm que ter muito cuidado. Vai haver muita reclamação por parte dos ‘players’ europeus, porque temos um mercado de capitais menos desenvolvido, temos bancos muito regulados e, em alguns casos, bancos de média dimensão muito mais regulados do que os americanos. Mas acho que era útil não seguir o caminho dos americanos.