Há hoje no Benfica uma história trágica. É a história de um desaparecimento. Do lento apagamento de um jogador que, quando surgiu, foi um relâmpago. Um raríssimo desvio da ordem natural das coisas. Um estrondo que abalou a Luz.

Não vale a pena contar tudo outra vez. Já sabemos o primeiro acto de cor: o percurso do menino chamado Bulo, que saiu das ruas da Musgueira para voar até à Catedral. Foi uma saga antiga. Digna da Ilíada. Essa é a história de Renato Sanches. Uma epopeia urbana, inspiradora e comovente. Mas depois veio a sequela. Uma jornada obscura, melancólica e labiríntica. Uma Odisseia; lembrando que, meia-volta, os deuses tentam fazer de nós joguetes das suas extravagâncias — de uma história cujo sentido nos escapa. O segundo acto começou como tantos outros: com uma transferência.

A eternidade no futebol é coisa para durar três meses. Renato Sanches foi vendido à pressa, por não sei quantos milhões, para o pior sítio possível para um rapaz como ele — o campeonato alemão. Um lugar onde só escandinavos, cossacos e brasileiros barrocos se orientam. Um lugar onde até a língua é um castigo. Não era uma transferência. Era um exílio. E assim, como Edward Said um dia escreveu (e escrevia sobre Renato!), “uma ferida aberta entre o homem e a sua casa”; “uma tristeza essencial que nunca se cura”. Renato precisava da Musgueira e do Benfica. Foi cedo demais. Novo demais. Era o princípio da fragmentação.

Reza a lenda urbana que, quando o Benfica foi buscar Renato ao Águias da Musgueira, ficou prometido um jogo amigável. Um gesto de cortesia. No dia marcado, Renato chorou. Tinha de jogar contra os amigos de infância. Recusou. Era inconcebível. A solução foi um pacto inédito: meia parte por cada lado. Jogou pelos dois. Porque ainda era inteiro. Estava escrito: aquela alegria era uma alegria com casa. E a fúria taurina que levava tudo à frente tinha um calcanhar. Uma fragilidade escondida no meio da força. Esse calcanhar era Ítaca — como em Ulisses, o outro herói de Tróia — o lugar de onde ele vinha. A origem. O Benfica. A Musgueira.

Hoje, ninguém sabe explicar muito bem o que se passou. Há lesões, sim. Mas é mais do que isso. É como se tivessem desligado qualquer coisa lá dentro. Renato foi apagando. Foi desaparecendo. E quando voltou à ribalta, no PSG, já não era bem ele. Era uma versão corporativa, uma personagem institucional. Um jornalista perguntou por que escolhera Paris, e ele respondeu: “Escolhi o Paris Saint-Germain porque acho que é o melhor projecto para mim.” “Projecto”? Que “projecto”? Ninguém diz isto impunemente. Esta frase é uma certidão de óbito. Já não é Sanches a falar. É o Oculto. Renato Oculto.

O que o caso de Renato prova é que não somos nós os ingénuos. São eles. Os dirigentes, os empresários, os facilitadores — são eles que vivem dentro de um sonho. Um sonho neoliberal. Que, como todas as experiências utópicas, mata. Como a União Soviética obliterou juventudes inteiras em nome de um futuro radioso, também o futebol-negócio arrasa jogadores em nome de um equilíbrio que nunca chega. Os clubes vendem milhões e continuam falidos. Acredita-se num mercado auto-regulado, na omnipotente mão invisível que a todos enriquece, onde vender é sempre crescer. Os jogadores saem aos 18 anos, e aos 25 já são enigmas clínicos. A economia é circular, mas o talento é o ângulo morto.

Ora, faz parte de ser adepto sentir saudades. Quando vemos o Renato Oculto contrair mais uma lesão, recordamos. Não só o cavalo bravo que rasgava defesas, mas o rapaz que chorava com a ideia de ter de defrontar os amigos. Um homem inteiro que resolveram cortar a meio em troca de uns milhões que nunca ninguém viu darem um chuto na bola.

Lembram-se? O Benfica não jogava nada. A equipa arrastava-se como num enterro. E então apareceu aquele miúdo, nascido em 1997. Era a inocência, e era bruta, e era flor. Queixo para cima, peito para frente, o olho rútilo ardendo contra o mundo. Em 2015/16, no primeiro toque, o menino das tranças pretas rebentou com as redes da Académica. Um petardo. Um pastilho. Um fado. Que golo, senhores! Que golo! Carregava o jogo como quem carrega a vida. Deu da sua alma a todos. Tinha-a de sobra. O campeonato foi dele. Parecia para sempre.

O desaparecimento de Renato Sanches é o símbolo da desumanização do futebol moderno, um romance de formação ao contrário, onde o herói vai murchando em vez de florescer. Mas tudo tem o seu reverso. E Renato tem apenas 27 anos. É um corpo doente, mas também é uma alma colossal. Isso não morre.

No futebol, na vida, há sempre um lugar onde o herói regressa — não para ser aclamado, mas para fazer o que falta ser feito. Renato, qual Ulisses, já está de volta a casa. Começa o terceiro acto. E agora? Agora Renato terá de descobrir a resposta. Para que volte a ser Sanches. Renato Sanches.

Manuel Fúria é músico e vive em Lisboa.

Manuel Barbosa de Matos é o seu verdadeiro nome.

E escreve segundo o antigo Acordo Ortográfico.