
Nunca terá Alvalade ouvido, sentido também, tamanha vibração de gargantas berrantes a entoarem o oficioso hino do Sporting. Foi um tremor de decibéis a agitarem orelhas, uma sonoridade a pactuar-se com a delicadeza da ocasião. Ganhando, os leões virariam campeões, até poderiam nem ganhar, mas só ganhando o seriam pela certa, sem dependerem de outras freguesias, tinham de ganhar. E nem três minutos havia quando o risco da impaciência já distribuía consequências.
Houve bola batida para a frente só para sair de campo, bola a atrapalhar e a ser prensada por Maxi Araújo, mandando-o à relva, bola disputada por Gyökeres e a sola da chuteira de Borevkovic para o sueco cair, bola precipitadamente rematada em carambola por Catamo, na área, preocupado em chutá-la com a força de um intento urgente. O Sporting jogava com uma missão que o apressava, tinha então de jogar também contra isso, para contrariar o que o impelia a procurar o seu sueco com passes vindos demasiado de trás. Faltava calma, a que o Vitória tinha de sobra ao tentar estender as suas jogadas.
Demorou mais de um quarto de hora o Sporting a estabilizar os seus carretes, a empurrar um pouco para trás a pressão dos pretendentes a estragar a festa. Serviu-se de um Zeno Debast ligado à tomada que do relvado ia dar lá acima à tribuna onde assistia Hjulmand, descansado como se a desfrutar da vista numa esplanada. O belga começou a fazer as vezes do capitão a roubar bolas, recuperando várias no meio-campo do Vitória, os leões conquistaram território mesmo sem ganharem jogo por aí além. A decisão do passe a dar tinha pressa, a escolha de onde e quando ir pecava pela cautela extrema em não perder a bola ou pelo excesso de vontade. Também de um meio-termo carecia o Sporting.
Quando ainda se habituavam à sua melhor fase e apalpavam a superioridade na partida, já a cabeça de Gonçalo Inácio se antecipara às mãos de Bruno Varela, num canto, contudo, os leões perderam outro dos seus melhores. Um carrinho trapalhão de Benni Mukenki a tentar acudir à bola, no desespero, varrera pouco antes Nélson Oliveira, da própria equipa, levando por arrasto Ousmane Diomande, apanhando-lhe o joelho e tirando pela via da dor o costa-marfinense do jogo. Aprontava-se o defesa para sentar-se no banco e as gargantas em Alvalade voltariam a rugir, pelos 25 minutos, barulhentas e soando a algo parecido com o festejo de um golo. Não ali, mas em Braga, de onde chegara a novidade de um penálti convertido contra o Benfica.
Já não precisando, momentaneamente, de ganhar por obrigação, a notícia embalou o Sporting para a baliza do Vitória sem arte e engenho de realçar, mas com outras notas na prontidão a reagir às perdas de bola, a apertar cercos aos adversários. A fúria de Gyökeres entrou área dentro, pela direita, rematando para defesa de Varela. De longe, Trincão pontapeou sem grande preparação para as mãos do guarda-redes. Tímidas ambas as tentativas da equipa onde Morita pouco se notava no aglomerar de corpos vimaranenses pelo centro do campo, onde faziam por impedir que os leões ligassem jogadas por dentro.
Com o aproximar do intervalo, murchando o Vitória na capacidade de ter bola para Tiago Silva usar ou alimentar João Mendes entre linhas, nunca o Sporting logrou respirar fundo e assentar. Era uma equipa na ponteira de um sismógrafo: melhorava de súbito, tinha um pico de assomo à área contrária, para logo a seguir amainar; tanto recuperava bolas sucessivas na metade adversária como, na mesma jogada, falhava passes simples. Dissera Rui Borges na véspera que não reparara em ansiedades nos jogadores durante a semana, mas os nervos iam jogando por eles em Alvalade.
Nem lançado o epopeico Gyökeres, posto o sueco a debandar sozinho atrás da bola vinda de um passe a rasgar de Debast, pela direita, a equipa pôs gelo no frenesim da ocasião: o touro enraivecido deixou Borevkovic para trás, depois surripiou uma cueca por entre as suas pernas, só que desperdiçou o instante para finalizar, deixando Bruno Varela largar a baliza e tapar-lhe o ângulo de remate. Nem o mais letal do Sporting, a sua inevitabilidade em pessoa, aproveitava uma nesga para ser como de costume.
Transfigurados pela ocasião, esculpidas as suas versões neste sábado de simultaneidades pelo nervosismo, os leões foram para o balneário uns virtuais campeões nacionais, ao campo retornaram nessa efémera condição e os batimentos cardíacos acelerados eram comuns às bancadas, que assobiaram a espera que se fez para a ação em Alvalade ser sincronizada com a de Braga. A ânsia ia de dentro para fora e o vice neste versa.
Quis o Sporting regressar com outra voltagem, munido de uma intenção mais agressiva em vez de apressada. Era uma equipa a querer domesticar a urgência à força, ao safanão e à chicotada. Cedo se viu Gyökeres a correr feito louco para trás a recuperar bolas recém-perdidas para, depois, forçar jogadas contra os centrais. Trincão rematou outra vez de longe. O não alto Morita saltou bem lá acima num canto e com a cabeça enviou uma tentativa a passar perto da trave. Parecia haver outra clareza no plano.
Pelos 55 minutos já o Sporting emanava acalmia, era um conjunto pela primeira vez com tiques de serenidade a demorar o coche certo de tempo nas jogadas quando tinha de abrandar para provocar espaço algures. A jogada que rebentou a bolha em Alvalade foi elucidativa desse clique: a bola foi trocada sem pressas, Eduardo Quaresma atraiu a pressão a uma das suas conduções de bola para abrir uma cratera ao centro e libertar Debast, dono da presença de espírito para fingir um remate, abrir em Maxi na esquerda para, a um toque, o uruguaio servir um simbolismo calçado de vermelho.
Veio da chuteira direita de Pedro Gonçalves, igualmente de primeira, o golo desmancha-nervos com um dos seus passes colocados à baliza, este a ricochetear no poste antes de nela entrar para ele erguer um dedo e sem loucuras festejar, como se apenas de mais um mero golo se tratasse, enquanto um estádio inteiro vinha abaixo em entusiasmo. Ter sido o saudoso Pote, recém-regressado de uma lesão de cinco meses para acabar, mais do que uma ausência, com uma carência gritante, serviu para lembrar o quanto o Sporting perde sem a sua mistura peculiar de médio com atacante e uma pitada de falso extremo destro a jogar na esquerda. Desde setembro que não marcava.
A bola que entrou tocou o despertador para quem estava de visita, o Vitória juntou os bons tocadores de bola que tinha no campo para se adiantar no campo, em Tiago Silva e João Gomes e agora também Nuno Santos dividiu mais a posse com quem já contava os minutos para soltar os foguetes. Tinha o Sporting, uma vez acalmado, de não largar o volante do jogo.
Nem sempre teve supercola nos seus pés dos jogadores para manietar o adversário e vergá-lo a um destino. No proveito de um canto batido curto e trabalhado entre três mentes, Geny Catamo rematou de fora da área, em arco e contra o poste esquerdo. Haveria Gyökeres de beneficiar de outra oportunidade, não tanto nos moldes que tanto lhe aprazem, mais com corpos a rodeá-lo, mas de novo a arruinar a sua própria chance com toques a mais na bola, parecia uma sina contraditória para a lenda que o sueco esculpia, faz dois anos, no recanto verde e branco de Portugal.
Com o tempo sucedâneo, o Vitória também a lidar com o que se passava noutros códigos postais soube da vitória em andamento do Santa Clara em Faro que assim o tiraria do trampolim rumo à Europa e teve que se fazer à vida, havia que se embalar campo fora, procurar a baliza, arriscar mais. E na batata quente da precipitação atirada para os homens de branco, o Sporting encontrou a frieza para cravar na pedra o que os adeptos tanto gritariam pelo estádio.
Porque não haveria de ser, nem poderia ser, que a provável última aparição de Viktor Gyökeres em Alvalade, nestes preparos, lembrasse o sueco a complicar o que facilitou tantas e tantas vezes. Quando a gravidade devolveu uma bola à relva na área, foi o seu pé a teimá-la, seriam os seus calcantes a trabalhá-la com a subtileza de bailarino para se desviar de adversários, fintar o guarda-redes e marcar o seu 39.º golo no campeonato, o 96.º pelo Sporting, um monte de músculos e potência a embrulhar com delicadeza uma consagração, arrombando os portões aí sim os portões da perda de estribeiras.
O brutamontes sueco fez questão de se mostrar à loucura, correndo desalmado, despindo a camisola, tirando à boleia até o colete GPS e fletindo cada quadrado, cada linha da sua musculatura que foi a maior das forças deste Sporting, perdido de emoção ao ponto de fechar os olhos e espremer as pálpebras de euforia, ou será emoção?, ou talvez um fecho de porta às lágrimas quando juntou as manápulas para por a sua máscara.
Afinal, uma equipa dali a nada seria campeã e cheia de outras formas de tal estatuto nas suas estranhas: Gyökeres seria bicampeão como Trincão ou Diomande, o rapazote Quenda virou ‘só’ campeão, mas entre eles há um Inácio, um Pote ou um Matheus Reis tricampeões pelo clube desde a toada iniciada por Ruben Amorim em 2020 e desaguada agora em Rui Borges, durante toda a tarde em mangas de camisa e o seu habitual colete, regato a champanhe quando um apito selou o jogo.
Pais com um braço em volta de filhos, canalha de cabelo pintado de verde, amigos a abraçarem-se porque sim, caras enrugadas, recordadas dos tempos de míngua, a agitarem bandeiras e a chorarem. Já não havia jogo na cabeça de milhares quando o jogo ainda se jogava, gritava-se repetidamente “bi-cam-peão!”, era Alvalade a rebentar pelas costuras a saciar uma espera de 71 anos, ninguém lembrado de uma época de trocas de treinadores, muitas lesões e bastantes tribulações várias. No final, um estádio inteiro berrou entre lágrimas, uns quantos jogadores deitaram-se na relva, exaustos, a recuperaram algum fôlego agora que podiam. Vão precisar dele. A tarde fechava a pestana e a noite espreguiçava-se perante o Sporting bicampeão nacional.
E o Marquês de Pombal já estava à espera.