Em séries e filmes ao longo de décadas, os Serviços Secretos foram romantizados como um exemplo de segurança e lealdade para com a Casa Branca e, por consequência, para com o Presidente dos Estados Unidos. Também por isso, o ataque do passado sábado contra Donald Trump no Pensilvânia tem levado a um nível de escrutínio sem precedentes sobre uma das forças de segurança mais reconhecidas do país, e do mundo, que falhou em proteger o ex-Presidente de um atentado à sua vida.

A forma como o atirador conseguiu aproximar-se armado dentro do perímetro de segurança, apesar de alertas de testemunhas no local, tornou-se num dos grandes motivos de discussão, especialmente depois de uma entrevista da BBC com uma testemunha partilhada nas redes sociais.

“Vimos o tipo a escalar o edifício ao nosso lado, a 15 metros de nós. Ele tinha uma arma, era claro que ele tinha uma arma. Nós estávamos a apontar para ele, a polícia estava por lá a correr, não sabiam o que se estava a passar. E eu pensei para mim mesmo: porque é que o Trump ainda está a falar? Porque é que ainda não o tiraram do palco? Eu apontei durante dois, três minutos, os Serviços Secretos conseguiam ver-me e, de repente, ouvimos cinco tiros”, descreveu um apoiante de Donald Trump, identificado como Greg, à emissora britânica.

Imagens recolhidas pela TMZ mostram o atirador a colocar-se em posição, num telhado de uma fábrica. Várias testemunhas contaram à CNN que viram Crooks a saltar “de telhado em telhado”. E em vídeos do comício partilhados nas redes sociais, é possível ver atiradores-furtivos a dispararem sobre o atacante, depois de Trump colocar a mão na face.

Comunicação entre autoridades locais pode ter complicado resposta

Os Serviços Secretos têm sido muito criticados por ignorarem os alertas de civis na zona para os avanços de Thomas Matthew Crooks, o jovem republicano que atingiu Trump e matou outra pessoa, antes de ser abatido. Crooks estava a aproximadamente 130 metros do ex-Presidente quando foi atingido e morto pelas autoridades no comício em Butler, Pensilvânia.

Mas relatos recolhidos por vários órgãos internacionais apontam para uma aparente falha de comunicação entre os Serviços Secretos e as autoridades policiais locais, com quem existe uma coordenação neste tipo de eventos. Vários especialistas apontaram também para as várias camadas de comunicação e segurança no sistema de proteção do Presidente e ex-Presidentes em eventos públicos, que podem ter complicado a velocidade da resposta.

Segundo a CNN, o atirador terá sido visto por polícias locais a agir de forma suspeita junto dos detetores de metais, que alertaram os Serviços Secretos para o indivíduo suspeito, antes do tiroteio. A Associated Press também avançou, segundo informações de dois agentes de segurança, que Crooks foi confrontado por um polícia local, mas este recuou quando o atirador lhe apontou a arma.

Tim McMillan, ex-agente de segurança e jornalista da VICE News, explicou através da rede social X (antigo Twitter) que existem vários níveis de proteção em torno dos protegidos dos Serviços Secretos, sugere que os atiradores-furtivos não viram Thomas Crooks por estarem mais atentos a ameaças mais distantes, e refere que o local onde Crooks foi identificado “provavelmente seria da responsabilidade de forças de segurança locais”.

“Tipicamente, há linhas de comunicação limitadas entre os Serviços Secretos e os agentes locais no perímetro intermédio. Normalmente, há um ou dois agentes com uma linha de comunicação direta com os Serviços Secretos, o que quer dizer que as comunicações no terreno entre os polícias locais que viram o atirador passaram pelo agente que faz a ligação para os Serviços Secretos”, afirmou McMillan, notando que existe sempre “alguma confusão e ineficácia” quando várias agências trabalham em simultâneo, em eventos esporádicos.

Aos jornalistas, os Serviços Secretos explicaram depois do ataque que estavam quatro equipas de atiradores-furtivos no terreno, duas dos Serviços Secretos e duas de autoridades locais. Segundo o The Guardian, o porta-voz da agência, Anthony Guglielmi, confirmou que Crooks estava num nível de segurança que seria alvo da atuação tanto dos Serviços Secretos como de agentes locais.

Ex-agentes duvidam de recursos dos Serviços Secretos, que negam pedido pré-ataque

O antigo vice-diretor do FBI, Andrew McCabe, comentou no programa “State of the Union”, da CNN, que o perímetro de segurança definido para o comício de Donald Trump pode também não ter sido suficientemente adequado.“Um dos elementos mais básicos de segurança no local, especialmente quando há um espaço exterior e praticamente descontrolado, é eliminar linhas de visão para o espaço onde o protegido vai estar a falar ou ficar em pé. Se olharmos para o mapa, claramente apontamos que esses edifícios [onde o atirador se encontrava] estavam dentro de distância de disparo”, apontou.

À BBC, Charles Marino, antigo agente dos serviços que protegem os Presidentes dos Estados Unidos, concordou que a atuação deve ser questionada, porque uma das funções dos agentes é identificar “áreas preocupantes”. E um antigo comandante das forças especiais de Long Beach, na Califórnia, vincou à NBC que houve “um falhanço crucial de segurança” ao permitir que Crooks chegasse ao telhado.

Outro ex-agente, Jeff James, explicou à estação local WTAE que a conduta dos Serviços Secretos na sequência dos disparos também não foi completamente adequada - através do microfone no púlpito, foi possível ouvir Trump pedir ajuda para calçar um sapato e, depois de levantado, ainda teve tempo para se dirigir ao público. “Poderiam existir outros quatro atiradores que podiam começar a abrir fogo. Nós tratamos sempre um ataque como um precursor, e o verdadeiro ataque ainda pode chegar”, comentou o antigo agente e especialista em segurança nacional.

Já Evy Poumporas, jornalista e agente dos Serviços Secretos no mandato de Barack Obama, sublinhou que é preciso ser feita uma avaliação aos recursos disponíveis para proteger os Presidentes dos EUA. Recordando momentos em que não existiam agentes suficientes para determinados eventos na Casa Branca, Poumporas disse que “tudo isto tem custos” e que os Serviços Secretos sofrem de uma crónica falta de financiamento.

Donald Trump ainda gesticulou e falou para a multidão enquanto era retirado por agentes dos Serviços Secretos
Donald Trump ainda gesticulou e falou para a multidão enquanto era retirado por agentes dos Serviços Secretos Anna Moneymaker/Getty Images

Desmentindo uma série de rumores que, inevitavelmente, foram espalhados pelas redes sociais, Anthony Guglielmi esclareceu que não houve qualquer pedido antes do ataque, por parte da campanha de Donald Trump, para que o dispositivo de segurança fosse aumentado.

“Existe uma falsa perceção de que um membro da equipa do antigo Presidente pediu recursos de segurança adicionais que esse pedido tenha sido recusado. Isto é absolutamente falso. Aliás, nós adicionamos recursos, tecnologias e capacidade de proteção de modo a acompanhar o ritmo crescente da campanha”, disse o porta-voz dos Serviços Secretos.

A polícia federal norte-americana, o FBI, a autoridade responsável pela investigação ao incidente no comício no Pensilvânia, também assegurou que “não houve pedidos adicionais de segurança que tenham sido negados pelo FBI”.

Ataque gera bipartidarismo quase inédito em Washington

Vários membros do Congresso, em pedidos de explicações aos Serviços Secretos, exigiram respostas sobre os recursos que esta agência de segurança tem para fazer o seu trabalho, e teceram duras críticas ao aparelho em torno do líder conservador e candidato republicano às eleições presidenciais de novembro.

No dia seguinte ao ataque, Mike Johnson, o ‘speaker’ da Câmara dos Representantes e a terceira figura do Estado norte-americano, deixou o aviso. “O Congresso vai fazer uma investigação completa à tragédia de sábado para determinar onde houve lapsos de segurança e se existe alguma coisa que o povo americano precisa e merece saber”, disse.

As declarações do líder republicano no Congresso foram apenas o reflexo de uma vasta onda de indignação por parte de políticos de ambos os partidos, que correram a condenar a violência na campanha eleitoral e o ambiente político marcadamente tóxico. A tentativa de assassinato de que foi vítima Donald Trump parece ter gerado um raro momento de bipartidarismo em Washington, pelo menos durante alguns dias.

Rick Scott, senador republicano da Flórida, exigiu em comunicado que o departamento de Segurança Interna e os Serviços Secretos “explicassem como é que isto aconteceu e que passos devem ser tomados para investigar esta tentativa de assassinato e garantir que não volta a acontecer”. Outros senadores, desde o ultraconservador Josh Hawley à democrata Jacky Rosen, pediram inquéritos à atuação das forças de segurança.

Na Câmara dos Representantes, dois congressistas do estado de Nova Iorque e de partidos diferentes, Mike Lawley (republicano) e Ritchie Torres (democrata) apresentaram uma medida para aumentar os recursos dos Serviços Secretos para proteger todos os principais candidatos às presidenciais - o que essencialmente daria a Donald Trump e a Robert Kennedy Jr. o mesmo nível de segurança que o Presidente, Joe Biden.

“À medida que surgem mais relatos, fica claro que é necessária mais proteção para todos os principais candidatos a Presidente”, escreveram os dois congressistas, num comunicado citado pela CNN.

Entretanto, Joe Biden anunciou, num discurso à nação em que condenou a violência política contra o rival, que as ações dos Serviços Secretos serão avaliadas, bem como o aparato de segurança para a Convenção Republicana, que se realiza entre esta segunda-feira e quinta-feira. E a diretora dos Serviços Secretos, Kimberly Cheatle, já foi convocada questionada para dar explicações aos congressistas, no dia 22 de julho.

Até este sábado, o último ataque a um Presidente dos EUA ou principal candidato à Casa Branca remontava a 1981, quando o então Presidente Ronald Reagan foi baleado à porta de um hotel em Washington D.C.. Quatro Presidentes foram mortos no cargo - o último foi o histórico assassinato em direto de John F. Kennedy, em 1963.