
Em noites de derrota, como a que a esquerda e o centro-esquerda ontem tiveram, é da praxe começarem a afiar-se as facas longas dos partidos, a aparecerem rapidamente os derrotados da última vez ou a serem rápidos os dedos que apontam num só sentido. Este resultado e esta erosão da esquerda não se resolve com repentismos e simplificações.
Se o PS tiver pressa, não recupera. Porque a rapidez, de que o mundo se parece alimentar, fugindo da ponderação e da moderação no debate, é o combustível que sustenta a velocidade do populismo. Abandona-se a complexidade da análise, cavalga-se o chavão e acha-se que, mudando a cara, está tudo resolvido. Os que ontem bateram palmas a Pedro Nuno Santos e fizeram as “selfies” do costume hoje já se mostram os eternos céticos do pedronunismo, tal como alguns dos que anteontem integraram os governos de António Costa dizem que a ele se deve este resultado. Assim, não vamos lá.
A recuperação da esquerda implica uma análise profunda dos resultados, que deve integrar um pouco de tudo. Obviamente, as reflexões internas sobre lideranças e discursos fazem falta. Mas isso é o que menos interessa no imediato, porque pouco resolve.
Os resultados nacionais não são diferentes dos resultados de muitos outros países. Trump, Bolsonaro, Milei, Orban, Meloni e todas as direitas radicais eram impossíveis e tornaram-se normalizados. Ler o resultado do Chega sem entender de onde vem este movimento (que vem de muitos lados) é redutor e pequenino.
Fazer análises curtas deste contexto internacional e nacional sem pensarmos para onde um neoliberalismo bastante selvagem nos empurrou a todos, desde o final dos anos 80, quando Thatcher se congratulou com o seu produto Blair, com a crise de 2008 como garantia da normalização da austeridade, com o TINA a crescer nos nossos cérebros, com a secundarização do estado social como modelo fundamental do bem comum europeu e como melhor resultado da social democracia, é redutor e pequenino.
Não entender quem é o eleitorado do Chega, que agrega saudosistas do fascismo, mas sobretudo os que se sentem excluídos há muito, uma classe média que foi perdendo poder de compra ou as classes que nunca o tiveram, é evadir-se de entender porque é que os concelhos onde o Chega cresce são os mesmos onde a esquerda, em particular o PCP, mas também o PS, já foram maioritários ou dominantes.
Deixar de fora do debate sobre resultados os papeis que a espetacularização da política, em que ir aos programas da tarde chorar ou cozinhar é mais importante do que debater ideias em entrevistas de fundo, em que as campanhas de testosterona a andar de mota, mergulhar, jogar volley ou saltar de paraquedas interessam mais do que a análise dos programas eleitorais, contribuem para uma alienação do debate político. Continuar a ter debates de meia hora com comentadores a dar notas em modo eurovisão durante três horas é garantir que a performance do momento se torna mais importante do que a ideia por trás da performance. Gás para o populismo.
As extremas-direitas foram levadas ao colo pela comunicação social em todo o mundo. Porque surpreenderam e porque disseram alarvidades que soaram burlescas e, por isso, encontraram caixas de ressonância.
No contexto nacional, esquecer o papel da justiça e do Ministério Público, com as fugas de segredo de justiça, com o quanto contribuiu para a ideia coletiva de uma classe corrupta, em caças a bruxas sem fundamento, alimentou o discurso da suposta falha do sistema.
Ignorar o papel das redes sociais como fonte de (des)informação é não querer olhar para um lugar de perigo, esquecendo que Trump teve na sua tomada de posse os gigantes da tecnologia por uma razão que é tudo menos inocente.
Ser tolerante com os crimes de ódio, reduzindo-os a mera opinião é torná-los progressivamente aceitáveis e banalizar o pior que a humanidade tem para oferecer.
Achar que a esquerda, de repente, se entregou a causas identitárias esquecendo as suas causas tradicionais é cair na esparrela de quem quer construir essa ideia, esquecendo as lutas de sempre da esquerda e o caminho (sempre criticado) da redistribuição de riqueza e direitos que pautou o caminho recente da esquerda em Portugal, tão criticada por uma direita que votou contra todos os orçamentos e programas que aumentaram o salário mínimo, descongelaram pensões, carreiras, progressões e salários, que repuseram subsídios ou desenvolveram medidas como a gratuitidade de manuais escolares ou o acesso à saúde. É esquecer que o PS governou durante duas das maiores crises que nos afetaram, a pandemia e a inflação, com medidas que travaram impactos piores. E é também esquecer que causas como a igualdade entre os homens e as mulheres ou a luta pela dignidade dos trabalhadores também sofreram, no passado, as mesmas acusações quase ipsis verbis que hoje atingem a defesa de outros direitos humanos.
Analisar a hecatombe da esquerda implica convocar, de forma inteligente, quem pensa e faz ciência, quem está nas empresas, quem está nos bairros, quem vive ou sobrevive com baixos rendimentos, quem trabalha em todos os setores. Os tais estados gerais são mais urgentes do que nunca.
Discutir estes resultados implica não assobiar para o lado sobre as tendências de voto dos jovens e trazer para o debate público o papel da memória coletiva, da literacia de informação, do consumismo e individualismo desenfreados, da cultura como fonte de humanismo.
E é por tudo isto que penso que o Partido Socialista não pode ter pressa. Deve promover esta discussão no tempo até às eleições internas, antes de começar a bater palmas a um novo secretário-geral que será indicado como culpado num próximo mau resultado. Deve encontrar uma solução interna de gestão que dirija esta discussão e adiar eleições e a escolha de alguém para depois das eleições autárquicas, concentrando-se nesta campanha e neste debate.
Há várias figuras no Partido, sem ambição de liderança, que podem assegurar este papel. Com experiência e sabedoria, com capacidade de análise e entendimento.
Porque uma solução rápida alienará o debate e desmobilizará quem quer entender. E porque estamos perante uma maratona e não perante um sprint.
Em 2019, quando o Partido Socialista ganhou, alguém me perguntou na noite eleitoral porque é que eu estava de cara fechada. E eu disse que a extrema-direita tinha furado a cerca sanitária, em que nunca acreditei. E que a partir daí iam crescer e muito. Chamaram-me pessimista e eu rejeitei o epíteto. Otimista que sou, acredito que este seja apenas mais um ciclo negro da história das democracias ocidentais. Mas vai ser longo e requer um combate racional, porque vive da agressividade, da mentira e da gritaria. Por isso tem de ser vencido com serenidade, verdade e moderação. E isso convoca-nos para a complexidade e para a paciência.
Termino com uma nota de esperança. É nos círculos em que os eleitores têm mais qualificações académicas, aqueles que mais estudaram, que o Chega tem menos eleitores. A esperança no poder transformador da educação, do conhecimento e da cultura, contra o medo e alienação, continua viva.