Para gerações mais recentes, a emigração portuguesa é uma história mais europeia, mais próxima, onde as oportunidades de emprego dos familiares (ou até as suas) foram aparecendo em países como França, Suíça, Alemanha ou Reino Unido. Nas festas de verão, com o regresso de milhares de emigrantes a solo português, o sotaque mais ouvido e reconhecido é muito influenciado pelo francês. Mas, em algumas zonas do país, subsiste uma comunidade luso-venezuelana que, por estes dias, olha apreensivamente para o que se passa do outro lado do Atlântico.

O fluxo de emigração de Portugal para a Venezuela tem mais de 80 anos. Começou entre os anos 1940 e 1950, com origem, sobretudo, na Madeira e na zona de Aveiro. Após décadas de travessia transatlântica, a Venezuela tem uma das maiores comunidades de lusodescendentes do mundo, com 600 mil pessoas espalhadas pelos 23 estados - dessas, 218 mil estão inscritas como cidadãos portugueses, segundo dados dos consulados gerais de Caracas e Valência.

Os últimos dados do Observatório da Emigração, ligado ao Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE), apontam para mais de 50 mil cidadãos nascidos em Portugal a viver na Venezuela.

Um ‘gap’ geracional nas migrações portuguesas deixou, porém, uma separação emocional entre Portugal e Caracas. Hoje, muitos, especialmente os mais jovens, desconhecerão esta relação tão próxima, mas fisicamente tão longínqua. Com a tensa situação política na Venezuela a gerar, mais uma vez, uma forte preocupação pela diáspora portuguesa, faz sentido recordar a sua origem e o porquê de neste país, a 6.500 quilómetros do continente europeu, tantos portugueses terem criado raízes.

Uma história que vai da agricultura ao ‘boom’ do petróleo venezuelano e esmorece no Estado Novo

A abertura da América Latina à mão-de-obra estrangeira, especialmente aquela que tinha proveniência na Europa, chegou com o desaparecimento gradual do trabalho forçado - a escravatura nesta zona do mundo tardou em ser abolida e o Brasil foi, aliás, o último país latino a fazê-lo, em 1888.

Jorge Malheiros, investigador do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (IGOT-ULisboa) e especialista em migrações, explicou ao Expresso que a Venezuela - depois da vaga para o Brasil e antes dos fluxos mais pequenos para a Argentina e Uruguai - tornou-se num destino migratório após o final da Segunda Guerra Mundial, porque estes países precisaram de “alguma mão de obra para expandir o povoamento e para instalar as atividades agrícolas”.

“Os portugueses vão para a Venezuela inicialmente como trabalhadores agrícolas, como foram para uma série de outros sítios, designadamente quando, ao longo do século XIX, há o desaparecimento do trabalho semi-forçado, do trabalho escravo, e há o recrutamento de trabalhadores no espaço europeu. Neste quadro, sobretudo em países onde a industrialização é mais tardia, como Portugal e Espanha, e onde a transição demográfica também é mais tardia, explica-se que, havendo estas oportunidades na América do Sul, as pessoas se dirijam a estes espaços”, afirma o docente e membro da direção do Conselho Português para os Refugiados (CPR).

Ao longo do século XX, a relativa proximidade com o Brasil também ajudou a que alguns procurassem terras mais a norte. A proximidade contribui, aliás, a explicar em parte a proveniência de uma boa parte desta comunidade portuguesa inicial na Venezuela. “Se se fala do caso dos açorianos nos Estados Unidos, pode-se falar também de duas regiões portuguesas de onde saíram muito mais venezuelanos. Primeiro, a ilha da Madeira e, depois, a área de Aveiro, da Costa Nova, com uma extensão até ao Porto, são as principais áreas de origem da emigração portuguesa para a Venezuela e são hoje também as duas principais áreas de retorno de venezuelanos para Portugal”, anota Jorge Malheiros.

Além do passa-palavra característico de qualquer rede migratória, foram também cruciais “os problemas económicos em Portugal”. A emigração para a Venezuela acabou por baixar depois dos anos 1970, altura em que há uma nova política de atração de estrangeiros na Venezuela, “já ligada ao setor petrolífero”, com alguns emigrantes “mais qualificados”.

O fluxo de portugueses acaba por se ir diluindo nos anos 80, com a fuga para França, seguida da Alemanha, Luxemburgo e outros países do espaço europeu, a estabelecerem-se como a principal rota de destino dos emigrantes que, durante o Estado Novo, saíram de Portugal em busca de melhores condições de vida.

Jorge Malheiros esclarece que a ditadura pode ter tido “algum papel” na mudança de dinâmicas migratórias da América Latina para a Europa, reconhecendo como “útil” a emigração graças à “menor pressão social interna”e à entrada de remessas enviadas pelos próprios portugueses radicados no estrangeiro. “Mas a verdade é que a Europa está mais próxima, paga melhor e oferecia condições para a imigração que o Brasil ou a Venezuela não ofereciam”, além de ficarem “demasiado longe” e não ter “tantos ganhos”.

“Nos anos 60, com a afirmação do ‘welfare state’ [Estado Social] e a expansão económica da Europa, assente na indústria transformadora e dos equipamentos, primeiro na construção civil e na expansão suburbana, são precisos muitos trabalhadores. E isso atrai muita gente. Portanto, a deriva torna-se muito clara. A Europa é muito mais interessante a partir desta altura e a Europa estimula a migração, faz acordos, etc”, acrescenta o investigador do IGOT-IUL.

José Sócrates e Hugo Chávez protagonizaram fase de grande aproximação entre os dois países
José Sócrates e Hugo Chávez protagonizaram fase de grande aproximação entre os dois países Miguel Gutierrez/AFP via Getty Images

O pão como rosto de Portugal em Caracas

Para quem ainda se recorda melhor das viagens de cá para lá e de lá para cá, de familiares e amigos radicados na Venezuela, a primeira atividade que virá à cabeça como estando associada à presença portuguesa é a panificação. De facto, o negócio alimentar e, em particular, as padarias, continuam a ser o maior rosto da diáspora em Caracas.

Segundo noticiou uma reportagem do jornal Público, de 2017, durante uma crise alimentar que levou ao saque de vários estabelecimentos portugueses, 90% das padarias da capital venezuelana pertenciam a trabalhadores e empresários portugueses ou aos seus descendentes. Com a expansão dos centros urbanos nos países da América Latina, especialmente na Venezuela, depois da primeira vaga de emigração dos anos 40 e 50, “os portugueses fazem como fazem no Brasil: instalam padarias, casas de secos e molhados e começam a entrar no comércio e depois nas pequenas atividades industriais, sobretudo nas áreas urbanas”.

Para Jorge Malheiros, a perceção criada pelos lusodescendentes e pelos emigrantes portugueses “tem algumas semelhanças com a perceção que havia dos portugueses no Brasil” numa fase inicial, com a relação entre a agricultura e a exploração mais rural.

“No comércio alimentar, foram crescendo pequenos negócios, como encontra em outros países do Sul onde há imigração portuguesa. Há a ideia do imigrante que, tendo iniciado uma vida empresarial, consegue, com o seu esforço, estabelecer um negócio, ganhar algum dinheiro, e proporcionar alguma mobilidade social aos filhos. Creio que na perceção desta fase da emigração dos anos 40, 50, e depois desta transformação nos anos 60, quando há a componente empreendedora, quando o fluxo diminui, as pessoas começam a ter mais sucesso”, reflete o geógrafo.

Jorge Malheiros duvida, contudo, que as práticas gastronómicas portuguesas tenham tido um real impacto na vida dos venezuelanos. O investigador sugere que este fenómeno “também deve ser uma coisa mais regionalizada” e, “como houve esta ligação aos supermercados e à alimentação, algum tipo de produtos tornaram-se mais visíveis”.

O regresso, fosse ocasional ou permanente, teve também o seu maior impacto cultural na gastronomia nacional, em particular com a abertura de espaços de comércio com produtos venezuelanos e de restaurantes, em particular entre a zona de Aveiro e do Porto, como locais de expressão da relação entre os dois países.

Os amigos Sócrates e Chávez, o rap “Pino e Lino”, o debate do pernil de porco e o Magalhães

A presença grande de portugueses e lusodescendentes obriga, além das importações e exportações de produtos e bens, a uma certa aproximação diplomática entre Caracas e Lisboa. O final da Presidência de Hugo Chávez ficou marcado por momentos de acordo - e até de amizade - entre os dois países, mas o tempo de Nicolás Maduro no poder levou a uma deterioração notada na relação, reduzida ao estritamente necessário.

Chávez visitou Portugal várias vezes e a sua passagem mais conhecida ocorreu em 2008. Depois de uma reunião com o Governo português, na altura liderado por José Sócrates, o líder venezuelano brincou com os nomes de Manuel Pinho, ministro da Economia, e Mário Lino, ministro das Obras Públicas: “Pino e Lino, Lino e Pino”, cantarolou Chávez.

Quem também cantarolou foram os Gato Fedorento, que tinham estreado há pouco o formato “Zé Carlos” na SIC e, graças a Hugo Chávez, gravaram na memória coletiva dos portugueses um famoso ‘rap’.

Mas talvez o símbolo maior da cooperação entre Portugal e Venezuela durante os anos de Chávez seja mesmo o computador Magalhães. O projeto digital do Governo de Sócrates não teve o sucesso pretendido, pelo menos em Portugal, já que o computador continuou a ser exportado em massa para a Venezuela e, entre 2008 e 2016, chegou de forma gratuita a cinco milhões de crianças venezuelanas. “É um verdadeiro computador que aguenta bombardeamentos”, avaliou Chávez.

Mas a amizade do histórico líder latino foi substituída pela amargura de Nicolás Maduro que, tirando um abraço trocado com o ex-ministro dos Negócios Estrangeiros Paulo Portas, endureceu o tom ao falar de Portugal. Durante a crise alimentar de 2016, as autoridades venezuelanas impuseram fortes restrições à distribuição e venda de farinha, afetando gravemente os empresários portugueses, motivando uma ajuda diplomática pelo Governo português.

Jorge Malheiros considera que, embora já tenha havido alturas de “maior sintonia e proximidade”, a relação Venezuela-Portugal é “obrigatória”, precisamente devido ao “peso social da comunidade portuguesa que não pode ser ignorado”. “É uma relação ambígua, que é necessária do ponto de vista da sua manutenção por razões sociais, por razões económicas; por outro lado, é marcada por estes momentos de tensão, que resultam da situação política venezuelana e do modo como Portugal e a União Europeia olham para ela”, aponta.

No final de 2017, quando o povo da Venezuela tinha enormes dificuldades em arranjar carne para as refeições de Natal, Maduro, no seu típico estilo confrontacional e sem rodeios, mesmo a falar de líderes e autoridades estrangeiras, apontou um dedo hirto a Portugal.

“O que se passou com o pernil? Fomos sabotados e posso dizer de um país em particular, Portugal. Estava tudo pronto, comprámos todo o pernil que havia na Venezuela, mas tínhamos que importar e sabotaram a compra”, acusou o Presidente venezuelano. Na mesma altura, o vice-presidnete do PSUV, o partido de Maduro, disse que os portugueses “comprometeram-se, os 'gringos' [norte-americanos] assustaram-nos e não mandaram o pernil e estamos em apertos”.

Perante a frontalidade da Venezuela, Augusto Santos Silva, na altura ainda ministro dos Negócios Estrangeiros, viu-se forçado a dar uma certeza que poucos políticos foram forçados a dar. “O governo português não tem, seguramente, o poder de sabotar pernil de porco”, aclarou.

Crise política leva muitos a recuperar a língua e a regressar às origens

O passado mais recente da Venezuela é conhecido a nível geopolítico. Sob o mandato de Maduro, o país encontra-se numa enorme crise humanitária e socioeconómica. Milhões de pessoas fugiram para outros países da América Latina, via Colômbia, a inflação fez aumentar o preço de todos os alimentos e, depois das últimas eleições presidenciais, o futuro político dos venezuelanos continua incerto.

A comoção social no país afeta todas as comunidades e a portuguesa não é uma exceção. Em maio, organizações não-governamentais e associações de portugueses e lusodescendentes alertaram que “a comunidade portuguesa não está a passar bem, há necessidades muito grandes”, e pediram um maior esforço pelas associações existentes em território português, que muitas vezes criam campanhas de solidariedade para ajudar a diáspora.

“A Venezuela tinha também um conjunto de portugueses mais velhos com um rendimento muito baixo. E há, nas comunidades, algumas associações que se juntaram para ajudar aqueles que ficaram, para dar informações, ou para apoiar também o acolhimento daqueles que regressam”, demonstra Jorge Malheiros.

Mas milhares de portugueses e lusodescendentes têm preferido abandonar o país, em vez de ficar à espera que a situação melhore. Entre 2015 e 2018, cerca de 10 mil cidadãos nacionais saíram da Venezuela rumo a Portugal (dos quais seis mil foram para a Madeira), segundo revelava em 2019 o então secretário de Estado das Comunidades Portuguesas, José Luís Carneiro.

“A situação de tensão política e de redução das liberdades e, sobretudo, o deteriorar das condições de vida, também tem impacto sobre a comunidade portuguesa, que, apesar de tudo, é vista como uma comunidade que tem algum rendimento. Não estou a dizer que sejam todos ricos, mas que é vista como uma comunidade que teve algum sucesso. Mas também sofre bastante com esta situação. Juntando estas duas componentes, económica e política, tem aumentado muito o volume de pessoas que saem. Ora, nesta lógica de retorno, o número maior é também para os espaços de origem”, sublinha Jorge Malheiros, que clarifica que estas chegadas notam-se, mais uma vez, na Madeira e no litoral Norte.

Já no Algarve, o tipo de emigração venezuelana não é tanto de retorno, mas antes de procura de oportunidades através da fronteira espanhola. “O volume de retorno e de chegada dos venezuelanos é muito maior na Espanha do que em Portugal. Alguns destes venezuelanos obtêm a cidadania espanhola, como os que têm a ver com Portugal obtêm a cidadania portuguesa, e alguns emigram para Portugal e trabalham em sítios onde há oferta de trabalho, como acontece no Algarve”, elucida ainda.

Malheiros acredita, portanto, que as dificuldades socioeconómicas sejam um dos motivos que tem contribuído para um aumento do interesse na língua portuguesa. É que, como avançou a Lusa em maio, o ensino de português está a aumentar exponencialmente na Venezuela.

Segundo os dados do embaixador de Portugal, João Pedro Fins do Lago, há quase 12 mil alunos a estudar português na Venezuela, especialmente em comunidades lusodescendentes. “Há pouco mais de um ano e meio 7.500 alunos estudavam português na Venezuela; hoje, um ano letivo e meio depois estamos a chegar aos 12.000 alunos”, afirmou o embaixador, que admitiu que “a língua portuguesa tem um valor económico e abre mercados, possibilidades para o futuro dos jovens”.

Por isso, o investigador e membro da direção do CPR não acha “surpreendente que haja algum crescimento do interesse para a língua e para a cultura portuguesa”.

“Por um lado, a visão e a perspectiva de Portugal fora de Portugal é mais positiva, e muitas vezes diz-se que as terceiras gerações, e as segundas um pouco, recuperam o orgulho em relação ao espaço de origem. Por outro lado, há carência de bens na Venezuela, há restrições no acesso às coisas, para além da situação política ser ela própria mais confrangedora, com tensões, conflito, mesmo, às vezes, episódios de violência. Esta situação ajuda que as pessoas também promovam a ideia de aprender português e, para lá da componente da atração da recuperação da cultura portuguesa, vão tentando adquirir também aqui um recurso complementar”, explica Jorge Malheiros.