Em comunicado enviado à Lusa, a Fundasaun Mahein (FM) questiona em particular a "intervenção" do ex-Presidente da República Xanana Gusmão, que considera estar a politizar o debate em torno do caso de uma forma que pode ser prejudicial para as alegadas vítimas.

"A FM está profundamente preocupada com a intervenção de Xanana no caso, uma vez que politizou o debate de uma forma profundamente prejudicial para as vítimas dos crimes deste padre e outras vítimas de abuso sexual", refere-se no comunicado.

"Além de ignorar os sentimentos das vítimas do ex-padre, a intervenção de Xanana Gusmão incentivou outros partidos a concorrerem pela simpatia dos eleitores, tomando posições sobre esta questão. Embora estas posições possam basear-se, em parte, em questões de princípio, esta é também uma forma de oportunismo político em torno de uma questão séria e sensível, que corre o risco de acrescentar mais insultos às vítimas", sublinha-se.

Manifestando-se preocupada com o impacto que essas intervenções possam ter na estabilidade social e em eventuais danos adicionais às vítimas, a FM considera que prejudicam também os esforços de combate ao abuso e à violência.

"Este caso representa um teste importante para o nosso sistema jurídico, uma vez que determinará se o Estado de direito realmente existe em Timor-Leste, ou se o processo de justiça pode simplesmente ser sequestrado para fins políticos por líderes poderosos", afirma a organização.

Em causa está o julgamento de Richard Daschbach, 84 anos, que é acusado de abuso sexual de crianças, pornografia infantil e violência doméstica e que começou em fevereiro no Tribunal Distrital de Oecusse.

Xanana Gusmão viajou para Oecusse com Richard Daschbach, que foi expulso do sacerdócio depois de confessar os seus crimes ao Vaticano, tendo causado polémica por uma visita à casa onde o ex-padre está em prisão domiciliar.

O líder histórico timorense deverá igualmente ser arrolado como testemunha da defesa.

"Desde a intervenção pública de Xanana, muitas pessoas têm falado em apoio de Daschbach, e um debate feroz tem-se desenrolado nas redes sociais entre apoiantes de Xanana e do ex-padre, e aqueles que pedem justiça para as vítimas", recorda a FM.

"Os filhos de Xanana também escreveram publicamente sobre a sua consternação e raiva em relação às ações do pai, e expressaram apoio e solidariedade com as vítimas", sublinha.

A FM exorta os juízes do caso a "ignorarem a interferência política que está a tentar influenciar a sua decisão e, em vez disso, reverem as provas objetivamente, incluindo notando que o ex-padre já confessou estes crimes em inúmeras ocasiões e foi expulso do sacerdócio pelo Vaticano" por causa disso.

"É vital que o Estado de direito seja aplicado de forma igual e consistente no nosso país, que não só proteja os cidadãos de atos criminosos e garanta que os criminosos são punidos de acordo com a lei, mas também garanta a legitimidade do Estado e garanta a estabilidade nacional", considera.

"Um processo jurídico justo e transparente demonstrará também que ninguém está acima da lei, o que, esperemos, encorajará outras vítimas de abuso a apresentarem-se e a abordarem este grave problema social que ameaça a segurança e a segurança de todos os nossos cidadãos", nota ainda.

A FM considera que o apoio público de Xanana Gusmão e o facto de ser testemunha de defesa "mina o Estado de Direito em Timor-Leste e inflama divisões sociais e políticas, uma vez que o peso da sua personalidade e fé do público no seu julgamento é tal que muitos acreditarão que o padre é inocente, e que as vítimas do padre devem estar a mentir ou a exagerar".

"Isto já pode ser visto nas redes sociais, uma vez que os apoiantes de Xanana questionam a credibilidade e os motivos das vítimas do padre e atacam aqueles que pedem justiça", considera.

A organização questiona igualmente a cobertura de alguma da media timorense, nomeadamente aquando da visita de Xanana Gusmão à casa onde Daschbach está em Díli, por não questionarem os seus motivos ou mencionarem os detalhes da acusação.

"Isto contribuiu para a falta de compreensão entre o público e potencialmente prejudicou o caso ao ponto de ele poder ser absolvido das acusações, apesar das suas múltiplas confissões e da chocante falta de remorsos", refere.

"Além de minar o processo legal e potencialmente permitir que este padre criminoso escape à justiça, as ações de Xanana revelam o duplo padrão de como a lei é aplicada e desencorajam outras vítimas de abuso sexual a apresentarem-se, mostrando que políticos poderosos podem intervir do lado do abusador, especialmente quando o abusador é alguém numa posição de poder", acrescenta.

No comunicado a organização recorda os "inaceitavelmente elevados" índices de abuso sexual, assédio e violência de género em Timor-Leste, podendo as ações de Xanana Gusmão "dificultar ainda mais o combate a esses males sociais".

O julgamento está previsto continuar no próximo dia 22 de março.

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