Depois de acompanhar mais de 130 mil pessoas ao longo de 43 anos, uma investigação da Harvard School of Public Health concluiu que ingerir cerca de duas porções de carnes vermelhas processadas – como bacon ou mortadela – por semana está associado a um risco mais elevado de demência (um aumento de 14%) face a quem consome aproximadamente três porções por mês. No total, foram identificados 11.173 casos da doença.

Para os especialistas ouvidos pelo Expresso, o estudo – apresentado na semana passada na conferência da Alzheimer’s Association em Filadélfia – surge na linha do já conhecido: o consumo deste tipo de produtos traz um maior risco de problemas de saúde como doenças cardiovasculares, diabetes e cancro. Com os estudos sobre a existência de uma relação entre o declínio cognitivo e o consumo de carne em geral a apresentarem, até então, algumas discrepâncias, surge agora uma ligação entre a carne vermelha processada e a demência, mas não uma causa-efeito.

“É importante destacar algo que os próprios autores do estudo assinalam: não há um nexo de causalidade, há uma associação, um risco que está aumentado”, aponta José Camolas, nutricionista da Unidade Local de Saúde Santa Maria e professor na Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa (FMUL). “Este estudo não é para provar que há uma relação causa-efeito entre o consumo de carne vermelha e a demência, apenas estabelece esta relação. Em 130 mil pessoas encontraram uma incidência de demência de 11 mil, o que dá alguma robustez aos dados”, realça Camila Nóbrega, neurologista do CNS - Campus Neurológico.

A questão da carne vermelha está desde logo na “composição original”, explica José Camolas, uma vez que é “habitualmente mais rica em gordura e em gordura saturada”, daí a associação ao risco cardiovascular e de diabetes. E no caso do processamento, utilizam-se substâncias “para dar mais sabor ou que aumentam a durabilidade dos produtos”, como sódio e nitritos, que “têm um conjunto de mecanismos pelos quais podem associar-se à doença em geral e à degeneração neurocognitiva em particular”, como destacam os autores da investigação.

Para lá do prato

“Não raras vezes, o consumo excessivo de produtos muito processados é indicativo de estratos socioeconómicos mais desfavorecidos, que depois, por sua vez, também condicionam outros fatores de estilo de vida”, observa o nutricionista. Os resultados do trabalho sugerem que a substituição de uma porção diária de carne vermelha processada por uma de frutos secos e leguminosas pode diminuir em 20% o risco de desenvolver demência. Estes contêm elementos “potencialmente protetores da saúde”, mas não conta só o que está no prato.

“Se consumo mais de um tipo de alimentos, eventualmente também poderei ter outros fatores do meu estilo de vida que são igualmente protetores, isto é, posso fazer mais atividade física ou ter um sono de melhor qualidade. Aquilo que escolho comer não tem um impacto apenas e só direto pelos componentes do próprio alimento, mas é também uma espécie de bilhete de identidade do meu estilo de vida em outras dimensões”, enquadra o professor da FMUL.

Vários estudos já procuraram “tentar identificar os elementos da dieta que poderiam ser responsáveis por menor risco de demência”, concluindo-se que “não há um elemento único, parece ser um conjunto de hábitos”, nota Camila Nóbrega. Mas é certo que a alimentação é essencial. “A dieta é um dos fatores que, modificado, pode alterar a progressão do declínio cognitivo. Há estudos a mostrar que pessoas saudáveis que adotem uma dieta de estilo mediterrânico, por exemplo, mesmo em fases já tardias da vida, conseguem diminuir o risco de progressão para uma doença degenerativa”, refere a neurologista. “E mesmo no caso de défice cognitivo ligeiro, a adoção de uma dieta de estilo mediterrânico também diminui o risco de progredir para demência”, acrescenta.

Também na semana passada, a Lancet Commissions atualizou o relatório dedicado à doença, acrescentando dois fatores de risco modificáveis aos 12 já identificados no documento publicado em 2020: colesterol e perda de visão não tratada juntam-se a educação, hipertensão, tabagismo, obesidade, depressão, sedentarismo, diabetes, consumo excessivo de álcool, traumatismo cranioencefálico, poluição atmosférica, isolamento social e perda de audição. “Promover a escolaridade é o primeiro fator, começa logo nos primeiros anos de vida. E depois a partir daí, todos os outros que se têm vindo a identificar são importantíssimos rastrear e prevenir”, salienta Camila Nóbrega. “Quando estamos a falar de doenças que não têm cura, o foco na prevenção não pode ser relaxado.”