O conceito de psicosfera, ou seja, a ideia de que existe em nosso redor uma atmosfera psíquica (mental), fruto de uma biosfera habitada e moldada pelos seres humanos que vai depois influenciar a consciência humana, não se encontra muito popularizado. O termo é familiar a alguns psicólogos, até porque se assemelha à ideia de noosfera, mencionada pela primeira vez, em 1922, pelo filósofo e cientista francês Teilhard de Chardin, um padre jesuíta.

Para os filósofos que exploraram a noção de noosfera – a qual, rudimentarmente, se pode sumarizar como sendo o mundo das ideias e do pensamento humano –, ela representa o terceiro estágio de desenvolvimento do nosso planeta, após a geosfera (quando só existia matéria inerte) e a biosfera (que viu a vida celular e biológica dominar o planeta). Influenciados pelo clima de efervescência científica do primeiro quartel do século XX, especialmente pelas novas e revolucionárias descobertas na área da física e da química, os seus promotores propuseram que a biosfera, a vida biológica, foi profundamente transformada pelo conhecimento humano.

Na visão particular que Chardin tinha da noosfera, da mesma forma que temos uma atmosfera que envolve a terra e as suas criaturas vivas, existe, a permear-nos, o mundo das ideias, criado pelos seres humanos e sob a forma de cultura, instituições, linguagens, teorias, diversas formas de conhecimento (incluindo o científico) e pensamentos espirituais. Uma das características basilares da noosfera é a de que ela só emergiu e cresceu (não cessando de aumentar) devido às interações entre todas estas ideias e entre as mentes humanas, uma teia de relações que se tornaram cada vez mais complexas à medida que fomos evoluindo e crescendo em número: primeiro como espécie, depois como civilização.

A psicosfera, por sua vez, representa o espírito da época, o zeitgeist, como diziam os filósofos alemães do século XVIII e XIX – com destaque para Friedrich Hegel –, quando queriam referir-se ao clima intelectual, sociológico e cultural que caracterizava uma pequena região ou o mundo inteiro, em determinado período histórico. Dito de modo simples, a psicosfera é uma espécie de amálgama de todas as mentes individuais dos habitantes de uma biosfera (um local), o estado de espírito coletivo em determinado momento e local.

Grae Dickason / Pixabay

A 10 de setembro de 2001, um dia antes dos ataques terroristas nos Estados Unidos, a psicosfera a nível global era bem diferente da que existe em abril de 2021: após a Guerra ao Terror e as suas consequências na geopolítica mundial, depois da crise económica e financeira que afetou a economia do mundo em 2007 e 2008, e, ainda, a emergência sanitária provocada pela COVID-19.

Uma vez aqui, a questão vem logo ao de cima. Afinal, como se caracteriza a atmosfera psicológica em que estamos neste momento envolvidos, coletivamente? Qual o estado de espírito que emana da amálgama de milhares de milhões de mentes humanas espalhadas por toda a Terra? Qual a psicosfera do mundo de hoje, nomeadamente no mundo ocidental?

“Eu não consigo respirar” é o novo hino das revoltas, “um slogan pelo direito político de existir”

O ano de 2021 começou com a esperança de que bastaria passar de uma data para outra, um mero adeus a 2020 regado a champanhe, para que, de repente, velhos e endémicos problemas desaparecessem. Uma ilusão.

Afinal, em que ponto da história nos encontramos? A psicosfera dos tempos atuais é possível de identificar através do que nos dizem e avisam diversos pensadores e escritores, mas, também, por via de pequenos acontecimentos que simbolizam o período histórico em que vivemos.

Comecemos pelas 27 vezes que George Floyd repetiu a frase “eu não consigo respirar” (“I can’t breathe”) num vídeo de nove minutos e meio, onde surge prostrado no chão de uma rua de Minneapolis, nos EUA, com a cara achatada contra o asfalto e imobilizado por Derek Chauvin, agente da polícia que usa os seus joelhos para lhe pressionar o pescoço e as costas. Enquanto agonizava, ficou patente no vídeo a total impassividade e insensibilidade do polícia que restringia a sua respiração durante tanto tempo, assim como de outros três agentes que foram cúmplices no sucedido – ordenaram às pessoas que se aglomeravam e assistiam ao sucedido que se afastassem, mesmo quando algumas destas, já em desespero, imploravam para que toda a cena de submissão policial tivesse um fim. Ela só acabou com a morte trágica de Floyd debaixo dos joelhos de Chauvin. “Digam aos meus filhos que eu os amo”, conseguiu ainda dizer Floyd, um afro-americano. “O meu estômago dói! O meu pescoço dói! Dói-me tudo! Pare!” Estas palavras também se ouvem no vídeo. Tudo por causa de uma suposta (nunca provada) nota falsa de 20 dólares.

A detenção que levou à morte de George Floyd

A forma como George Floyd morreu, asfixiado e a implorar enquanto todos assistiam sem nada poder fazer, tornou-se um símbolo da era em que vivemos, garante a filósofa italiana Donatella di Cesare, autora do livro O Tempo da Revolta. “«I can’t breathe» tornou-se no slogan que reivindica o direito de respirar, isto é, o direito político de existir”, ao mesmo tempo que serviu de rastilho para as novas revoltas do século XXI, que, apesar de uma aparência de fugacidade, multiplicam-se em número e expandem-se, tornando-se num fenómeno global que irá perdurar”, escreve.

“A revolta irrompe por todo o lado do mundo. Acende-se, apaga-se; volta a propagar-se. Transpõe as fronteiras, sacode as nações, agita os continentes. Um olhar sobre o mapa das suas explosões repentinas, dos seus imponderáveis movimentos, atesta a intermitência na acidentada paisagem política do novo século. [...] Um cenário onde o confronto é feito de contraste, dissidência, luta aberta. Os protestos alastram-se, as ocupações repetem-se, os atos de desobediência multiplicam-se, os confrontos intensificam-se. É o tempo da revolta."

“Ainda que o fogo seja de pouca dura, e o evento fugaz, a revolta não pode ser considerada uma conjuntura efémera. Nas suas alternâncias, é um fenómeno global que promete ser duradouro. Nem a pandemia a conseguiu parar. Enquanto muitos se interrogavam já acerca da pólis desaparecida, sobre o espaço público perdido, a revolta voltou à superfície, avassaladora e irreprimível, desde Buenos Aires até Hong Kong, do Rio de Janeiro a Beirute, de Londres a Banguecoque. O rastilho de uma nova deflagração acendeu-se em Minneapolis. [...] As últimas palavras de George Floyd, pronunciadas enquanto o verdugo continuava a sufocá-lo, assumiram um valor emblemático graças a uma coincidência não casual, revelada pelo secreto sincronismo da História. Aquela morte terrível não foi efeito do biovírus que nos impede de respirar, mas obra de um abuso racista perpetrado com técnica policial.”

“De súbito, a respiração surgiu em todo o seu significado existencial e político. «I can’t breathe» foi elevado a hino das revoltas, ao mesmo tempo ato de acusação contra a prevaricação e denúncia de um sistema de asfixia que tira o fôlego. No turbilhão compulsivo do capital, a espiral catastrófica que fez da respiração um privilégio para poucos, é o afã dos explorados que está e primeiro lugar.”

O sistema, que aqui se fala, é mesmo o capitalista. Independentemente dos olhos ideológicos com que se olhe para ele, há factos incontornáveis: segundo o barómetro de 2020 da consultora de relações públicas Edelman (uma das maiores do mundo), 56% dos inqueridos, espalhados por 28 países do mundo, “acredita que o capitalismo na sua atual forma está, de momento, a causar mais mal do que bem ao mundo”.

O barómetro que lançaram em 2021 fez sublinhar ainda mais uma tendência que já vem de trás: aos olhos do público, as instituições políticas e o jornalismo, que noutras décadas gozavam de credibilidade, hoje em dia são vistas como das menos confiáveis.

No entender de Donatella di Cesare, além da política e do jornalismo, há que juntar as instituições responsáveis pelo garante da segurança pública e o primado da lei, as quais estão a entrar, igualmente, numa espiral de desconfiança junto do escrutínio público, dá a entender a filósofa italiana. O motivo?

A polícia de Hong Kong a perseguir ativistas pró-democracia nas ruas, durante um protesto a 1 de outubro de 2019 AFP

“Os atos de violência da polícia não são anomalias, mas revelam, sim, o fundo obscuro desta instituição. São como polaroides que capturam a polícia enquanto conquista espaço, ganha poder sobre os corpos, examina e experimenta uma nova legalidade, redefine os limites do possível. Se aquelas cenas [de George Floyd] suscitam desconcerto, se se afiguram tão ignominiosas, é porque são um indício de um poder autoritário, a prova da inegável existência de um Estado de polícia no Estado de direito”, aponta em O Tempo da Revolta.

“Sob este aspeto, as violências, ao manifestarem a essência da polícia, afloram a arquitetura política, que captura e bane, inclui e exclui, e onde, em suma, a discriminação está sempre latente. De repente, aparecem à luz do dia as fronteiras da democracia imunitária, onde a defesa reservada a uns, os salvaguardados, os protegidos, aqueles que não podem ser tocados, é negada aos outros, os párias, os vulneráveis, reduzidos a corpos inoportunos e supérfluos, dos quais, no final do dia, é possível desfazer-se.”

O futuro tornou-se, finalmente, numa caixa aberta, mas não sabemos o que aí vem

A dificuldade em respirar é assim transformada em alegoria ao mundo contemporâneo, deixando de ser uma mera descrição literal do que aconteceu a George Floyd. Um paralelismo que o filósofo Franco Berardi, também ele italiano, subscreve em entrevista ao jornal El País, alinhando-o com o aumento da precarização laboral (e da própria vida), a exaustão dos regimes capitalistas neoliberais, um mundo que se tornou cada vez mais complexo e uma pandemia que deverá recriar um novo normal para as nossas vidas. Não obstante, defende que esta emergência sanitária global abriu uma porta que há muito parecia encerrada, a de que é mesmo possível, politicamente e economicamente, fazer diferente do que até hoje acontecia, e, assim, mexer nas engrenagens que possibilitem uma nova forma de viver em sociedade.

“Nada é certo. [...] Não haverá apenas um cenário, mas sim muitos, contraditórios e até conflituosos. De repente, a pandemia reativou o futuro como um espaço de possibilidade, pois os automatismos — tecnológicos e financeiros — que desativaram a subjetividade política nestas últimas décadas de neoliberalismo foram quebrados”, responde ao El País.

“O cenário económico e social que iremos descobrir, quando sairmos da quarentena, é difícil de ser imaginado. Não se parecerá com as recessões do passado, porque será simultaneamente uma crise da oferta e da procura, e também porque este colapso está a expor uma estagnação que já era visível nos últimos dez anos, apesar dos esforços de revitalização económica. Ao longo das últimas décadas, o crescimento diminuiu, ao ponto de se tornar uma espécie de distopia. A desaceleração económica não foi o efeito de uma crise provisória, mas sim fruto da exaustão dos recursos físicos do planeta e do aumento tecnológico da produtividade.”

Para a bateria do seu telemóvel. Uma mulher e uma criança a partir pedra para extrair cobalto, na região de Lubumbashi, na República Democrática do Congo, em maio de 2016 Junio Kannah / AFP

“Paradoxalmente, não conseguimos ver a possibilidade de reduzir o tempo de trabalho porque estávamos obcecados com a ideia de produzir produtos nacionais, mas esta não é uma maneira de medir a quantidade de coisas úteis que estávamos a produzir, mas sim uma medida da acumulação de valor monetário. Agora, este feitiço quebrou-se. Obviamente, a queda que a pandemia provocará exigirá um esforço de reconstrução, mas estamos na condição de decidir o que queremos reconstruir e o que queremos esquecer. Podemos abandonar o modelo extrativista, a extração poluidora de petróleo e adotar tecnologias não poluentes.”

O que pode levar alguém a teorizar que, após a pandemia provocada pelo coronavírus SARS-CoV-2, muito poderá ser diferente, em vez de voltarmos aos velhos hábitos de existência, ao que era a norma? Na opinião de Peter Sloterdijk, estamos mesmo perante um “novo agora”, pois “por causa da globalização, a interconetividade das vidas humanas na Terra é mais forte e precisamos de uma consciência compartilhada de imunidade, salienta ao El País. “A imunidade será a grande questão filosófica e política após a pandemia”, acredita o filósofo de origem germânica.

Em lugar de uma competição entre países ou blocos de nações, como a que se assistiu em torno da questão das vacinas e, pouco antes, de algo tão simples como as máscaras de proteção, Sloterdijk, munido de otimismo, acredita que haverá uma transição para um espírito de comunidade, a que as nações, por força das circunstâncias, terão de invariavelmente aderir:

“Vejo, no futuro, a competição pela imunidade ser substituída por uma nova consciência de comunidade, pela necessidade de promover a comunidade, fruto da observação de que a sobrevivência é indiferente às nacionalidades e às civilizações”, defende.

E conseguirá essa consciência, global, de que vivemos numa grande comunidade prosperar numa época em que, simultaneamente, o populismo autoritário e nacionalista parece estar em crescendo? Em outubro de 2020, mais de 200 académicos de todo o mundo, todos eles especialistas no estudo do fascismo e do autoritarismo, assinaram uma carta aberta onde alertam que a democracia “está a definhar” ou em vias de “colapsar em larga escala”, a nível global. Segundo os seus signatários, “a democracia é extremamente frágil e, potencialmente, temporária, requerendo vigilância e proteção” por parte de todos os cidadãos.

Marine Le Pen, presidente da União Nacional (França), e André Ventura, líder do partido Chega. A estratégia dos dois partidos, da extrema-direita populista, é a de captar votos junto do eleitorado mais insatisfeito André Kosters / LUSA

Em relação as estas forças políticas, Sloterdijk faz uma antevisão curta e crua:

“É preciso que todos percebam que esses movimentos não são operacionais, que têm atitudes pouco práticas. Expressam insatisfações, mas de modo algum são capazes de resolver problemas. Acho que serão os perdedores da crise. O público vai entender que não podemos esperar ajuda alguma da parte deles.”

Vivemos num estado de fadiga e depressão que já estava latente ainda antes da COVID-19

No início de 2020, quando a pandemia começou a atacar o globo, de uma ponta à outra, o esloveno Slavoj Žižek, um dos pensadores ocidentais mais populares da atualidade, escreveu em A Pandemia Que Abalou o Mundo que “não bastará tratar a epidemia como um acidente infeliz, livrar-nos das suas consequências e regressar ao normal funcionamento da nossa velha maneira de fazer as coisas, talvez com alguns ajustes nos nossos sistemas de saúde”, começa por abordar. “Teremos de colocar a questão fundamental: o que está errado no nosso sistema para termos sido apanhados desprevenidos por esta catástrofe, apesar de os cientistas estarem há anos a alertar-nos para a sua possibilidade?”

À época, Žižek problematizava que “a atual propagação da epidemia de coronavírus acabou também por desencadear uma vasta epidemia de vírus ideológicos que estavam latentes nas nossas sociedades: notícias falsas, teorias da conspiração paranoicas, explosões de racismos”. Desta forma, continua, “a bem fundamentada necessidade médica de quarentenas encontrou um eco na pressão ideológica para estabelecer fronteiras claras e para pôr em quarentena inimigos que representassem uma ameaça à nossa identidade”.

Apesar de tudo, fez uma importante ressalva, em jeito de previsão. “É possível que outro vírus ideológico muito mais benéfico se propague e, com sorte, nos infete: o vírus de pensar numa sociedade alternativa, uma sociedade para lá do Estado-nação, uma sociedade que se atualize nas formas da solidariedade e da cooperação globais”. Uma utopia irrealizável?

Carismático e influente, Slavoj Žižek tem sido um dos mais acérrimos e assertivos críticos do neoliberalismo Simon Plestenjak

Um ano depois e em conversa com o El País, a viver confinado devido a motivos de saúde, na Eslovénia, Slavoj Žižek diz que, atualmente, estamos num estado de fadiga crónica, tecendo paralelismos com o que sucedeu durante e após a guerra civil na antiga Jugoslávia.

“Agora, mesmo que existam 20 vezes mais contágios na Eslovénia [em relação à primavera de 2020], as pessoas estão mais indiferentes. Não é uma indiferença comemorativa, é desesperada. Ninguém sabe o que vai acontecer. As pessoas estão literalmente a perder o [sentimento de] desejo. Em Sarajevo, com os franco-atiradores nos telhados [durante a guerra], as pessoas lutavam para sobreviver; depois, quando a guerra acabou, vieram os suicídios. Temo que agora aconteça o mesmo. Daqui a meio ano, a crise sanitária pode estar mais controlada, mas depois virá a crise económica, e a terceira onda será a psicológica, as quedas emocionais, as gerações destruídas.”

A sua solução? “Precisamos de Estados fortes e eficientes, mas não se deve subestimar a autogestão das redes locais. O que se diz é que a crise mostrou o pior de nós. Discordo. Eu tive problemas de saúde durante o confinamento e recebi tanta ajuda, não só de médicos e enfermeiras, como de vizinhos, associações... Comecei a acreditar na ética das pessoas comuns. A decência de pensar «isto deve ser feito e eu estou aqui»”.

A terceira crise de que fala o esloveno, a qual nos irá atingir em cheio num futuro muito próximo, está relacionada com a saúde mental. “Esta pandemia está a expor o que guardávamos ou escondíamos da nossa expressão pública, e, perante condições extremas, os desequilíbrios mentais já existentes foram exacerbados”, defendeu a psicóloga Ana Caetano em entrevista ao SAPO, em março deste ano.

No que se refere a Portugal, mais especificamente, “temos de ter em atenção que somos um país com muitas perturbações de humor, principalmente oscilações de ansiedade e depressão”, relembrou. “Quando estamos em confinamento, sem liberdade de deslocação e com um vírus que é invisível e pode estar em qualquer lado, as respostas de lutar ou de fugir não existem. O que fica, portanto, é o ‘congelamento’, aquilo a que chamamos de ‘colapso’ – no caso dos humanos, isso fica arquivado no corpo à espera de ser processado. Mais tarde, depois de passar a pandemia, ao retomarmos uma espécie de normalidade, há uma série de coisas que podem começar a aparecer: sintomas biológicos como a sensação de peso no peito, a dificuldade em respirar, os problemas de foro intestinal ou na pele, ou, então, sob a forma de ataques de pânico, o medo de tomar algumas decisões relacionadas com a vida. É nesta altura que surge a importância de processar as emoções que ficaram por processar.”

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Ao mesmo tempo, também existe a necessidade de lidar com o luto e o desgosto, referiu Ana Caetano. “Há pessoas próximas de nós que faleceram, mas também há o elevado número de mortos que foram noticiados todos os dias em Portugal, sendo que, desde janeiro, ouvimos a frase de que é como se caísse um avião a cada dia e 200 ou 300 pessoas morressem. Isto traz uma sensação de insegurança. Neste caso, o que vamos nós processar em termos de perda? Vamos processar a perda de liberdade, de deslocamento, a perda de confiança de que o mundo é previsível – isto porque, de repente, a pandemia veio colocar tudo em causa. A nossa capacidade de controlar algum tipo de rumo para a nossa vida fica afetada.”

Deixámos de compreender o mundo complexo em que vivemos, um mundo cheio de “líderes corruptos, estúpidos e incapazes”

Atualmente, existem mais de 17 milhões de navios porta-contentores a circular pelos oceanos, sendo que entre cinco a seis milhões estão neste momento a atravessar o globo, cheios de bens diversos. A Bolsa de Valores de Nova Iorque é responsável pela transação, diária, de dois mil milhões a seis mil milhões de ações, uma escala dantesca e terrivelmente complexa só possível devido à automação, com os processos de análise e decisão a serem entregues a meros programas informáticos. Quanto às redes sociais digitais, só os utilizadores do YouTube são responsáveis, a cada minuto, por carregar mais de 500 horas de vídeo, o que resulta em 82,2 anos, só em tempo de vídeo, despejado por dia para esta plataforma. A 30 de junho de 2020 existiam 2,7 mil milhões de utilizadores ativos do Facebook, com 1,79 mil milhões a entrarem na rede social todos os dias, em média. Mais de 500 milhões de tuítes são publicados diariamente e pelo Whatsapp são enviadas, quotidianamente, 65 mil milhões de mensagens.

As contas foram feitas pelo escritor britânico e jornalista de tecnologia Tim Maughan, que, em jeito de remate final, dá conta da estimativa que foi feita para 2025, ano em que se prevê que 463 milhões de terabytes de dados sejam criados por dia, o equivalente a 212.765.957 DVDs.

O mundo, além de se ter tornado global, com as nações a estarem fixadas numa teia de interdependência, tornou-se extraordinariamente complexo, escreveu Maughan para a revista OneZero, em novembro de 2020.

“Das redes sociais digitais à economia global, passando pelas cadeias de abastecimento, as nossas vidas sustentam-se, precariamente, em sistemas que se tornaram extremamente complexos, sendo que deixámos muito [do que rege a nossa vida] para tecnologias e agentes autónomos que ninguém é capaz de compreender totalmente”, avisa. Dito de outra forma, criámos um mundo tecnologicamente intricado, um sistema globalmente complexo, que parece ter ganho vida própria e se tornou estranho a nós. “Ninguém está a conduzi-lo”, frisa, e qualquer esperança de agarrar o leme implica compreender uma verdade necessária: “seja de que forma for, perdemos o controlo”. Entretanto, qualquer tentativa de sondarmos a máquina complexa em que vivemos, em busca de explicações para o que nos afeta, tornou-se num quebra-cabeças demasiado grande para as nossas atuais faculdades mentais.

Um navio porta-contentores da operadora MAERSK, sedeada na Dinamarca, atravessa o Canal do Suez, no Egito, o qual liga a Ásia à Europa por via marítima AFP/STR

Na opinião de Tim Maughan, é quixotesco tentar encontrar neste sistema algo análogo a um “organismo”, com um centro nevrálgico (ou cérebro) de onde brotam braços que se ligam aos diferentes nódulos desta rede mundial, mantendo tudo interligado, processando todos os dados que por aí passam e tomando decisões. “A realidade destas redes está mais perto do conceito de inteligência distribuída, ou conhecimento distribuído, onde vários atores diferentes – cada um dotado de informação limitada, a qual não vai além do seu meio-ambiente próximo – interagem de uma determinada forma que conduz a processos de decisão, muitas vezes sem eles próprios saberem que é isso que estão a fazer”.

E assim se abre outro capítulo problemático. Se a humanidade perdeu capacidade de controlar e tomar decisões sobre o sistema global que criou, é a própria democracia que está em risco, assim como o poder político para conseguir acabar com as desigualdades económicas e a pobreza no mundo, por exemplo.

Na análise de Tim Maughan, “os políticos e os líderes mundiais têm cada vez menos controlo sobre a forma como estas redes fluem” e evoluem. “Em vez disso, encontram-se numa posição em que apenas gerem pequenas partes destas redes, e, certamente, não parecem ser capazes de operar mudanças drásticas nelas (até porque pertencem, maioritariamente, a empresas privadas), apesar de terem um impacto muito direto nas economias, políticas e população das suas nações.”

Quem também fez esta reflexão, mas com palavras mais cáusticas e em relação à incapacidade de ser fazer outro tipo de políticas com os atuais políticos, foi o polaco Zygmund Baumann, falecido em 2017 e considerado um dos grandes nomes da sociologia moderna. Numa das suas últimas entrevistas, em 2016, fez um diagnóstico:

“O que está acontecendo agora, o que podemos chamar de crise da democracia, é o colapso da confiança. A crença de que os líderes não só são corruptos ou estúpidos, mas também incapazes. Para atuar, é necessário poder, o ser capaz de fazer coisas, e política: a habilidade de decidir quais são as coisas que têm ser feitas. A questão é que esse casamento entre poder e política, nas mãos do Estado-nação, acabou. O poder globalizou-se, mas as políticas são tão locais quanto antes. A política tem as mãos cortadas. As pessoas já não acreditam no sistema democrático porque ele não cumpre as suas promessas. É o que está mostrando, por exemplo, a crise da migração. O fenómeno é global, mas atuamos em termos paroquianos. As instituições democráticas não foram estruturadas para conduzir situações de interdependência. A crise contemporânea da democracia é uma crise das instituições democráticas.”

Boris Johnson, atual primeiro-ministro do Reino Unido, foi um dos grandes promotores da saída do país da União Europeia (Brexit). As reais consequências desta decisão, votada em referendo, são extremamente complexas, apesar dos argumentos simplistas usados em campanha EPA / Will Oliver

Onde estão os projetos ou as “ilusões” capazes de dar sentido às nossas vidas?

Baumann, nas suas famosas reflexões sociológicas, mostrava-se pessimista em relação ao futuro da civilização humana. Foi ele o responsável por cunhar o termo “modernidade líquida”, para caracterizar o novo tipo de relações sociais, económicas e de produção que emergiu na década de 1960 e que, segundo ele, se tornaram atualmente dominantes. Estamos a falar de relações frágeis, fugazes e maleáveis que levaram a um enfraquecimento dos laços que ligam as pessoas entre si, assim como dos laços que as ligam às antigas instituições: como o Estado, os partidos políticos ou as empresas em que se trabalha (o mundo laboral), mas não só. Esta nova forma de relacionamento, com as suas características próprias, levou a que os indivíduos fossem imersos num sentimento ainda maior de incerteza, transformados em nómadas que constantemente alternam entre diferentes locais, habitações, empregos, relações amorosas e até valores e ideologias políticas. Com isto, acabaram excluídos das tradicionais redes de apoio, mas, ao mesmo tempo, ficaram livres dos constrangimentos impostos por essas mesmas antigas redes.

A contrapartida pela sensação de liberdade que comporta esta fluidez de vida está no peso da responsabilidade que, agora, recai quase todo sobre o indivíduo (em vez do coletivo), na medida em que ele se tornou no responsável – ou, pelo menos, é isso que interiorizou – por escolher o seu próprio caminho. O resultado final, conclui Baumann, é que este tipo de normatividade pode conduzir o indivíduo a uma crise existencial, em que ele se sente perdido, sem rumo.

Já em 1973, na obra A Negação da Morte, o psicólogo norte-americano Ernest Becker realça o quão crucial é, para o ser humano moderno, que a sua vida tenha um sentido e significado mais absoluto, maior do que ele próprio, algo que a religião, através das suas “ilusões” (palavra de Becker) durante muito tempo conseguiu. Na prática, estas “ilusões” funcionavam como um mecanismo de sobrevivência contra a consciência de que somos mortais, de que no fim apenas seremos pó – nesse aspeto, o heroísmo é, igualmente, uma forma de transcender o dilema da mortalidade. Contudo, a ciência acabou por ocupar o lugar da religião, e, segundo Becker, apesar da ciência ser um projeto que nos promete a imortalidade, ela mostra-se incapaz de dar um sentido para a nossa existência, de nos fazer sentir heroicos.

Segundo as ideias do investigador e antropólogo David Graeber, recentemente falecido, não é através da idealização que as sociedades ocidentais fazem do trabalho – de um emprego – que brotará algo capaz de dar, a toda uma civilização, um sentido existencial. Em 2013, para a Strike! Magazine, escreveu um artigo de opinião, que também se lê como um manifesto, que se transformou numa fonte de inspiração e importante referência: On the Phenomenon of Bullshit Jobs: A Work Rant, (em português ‘suave’, Sobre O Fenómeno dos Empregos da Treta).

Estafeta de entrega ao domicílio de comida
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O primeiro parágrafo resume, com suficiente clareza, o que está em causa:

“No ano de 1930, John Maynard Keynes previu que, até ao final do século XX, a tecnologia teria avançado o suficiente para que países como a Grã-Bretanha ou os Estados Unidos pudessem implementar a semana laboral de 15 horas. Não faltam motivos para acreditar que tinha razão, dado que a nossa tecnologia atual o permitiria. E, no entanto, isso não aconteceu. Em vez disso, a tecnologia inventou novas formas para que trabalhemos mais. A fim de alcançar este objetivo, foram criados novos trabalhos, que não têm, efetivamente, nenhum sentido. Enormes quantidades de pessoas, especialmente na Europa e nos Estados Unidos, passam toda a sua vida profissional na execução de tarefas que, no fundo, consideram completamente desnecessárias. É uma situação que provoca um dano moral e espiritual profundo. É uma cicatriz que marca a nossa alma coletiva. Mas quase ninguém fala disso.”

Desde então, o texto, bastante mordaz, tornou-se viral e já foi traduzido para várias línguas, tendo influenciado uma geração de académicos que passaram a estudar o mundo laboral e as suas relações de um ponto de vista diferente do que até há pouco tempo era a norma. O seu sucesso – Graeber desenvolveu a sua análise e, em 2018, transformou-a num livro – deve-se, em parte, ao facto de refletir a psicosfera atual, o estado de espírito de quem, antes e após a pandemia (e especialmente depois dela), anseia por um futuro diferente.

Uma ficção bem real sobre decadência económica, pobreza e os sentimentos de fragilidade e resignação

Nos últimos anos, coube a uma obra de ficção, uma série de televisão de sucesso, mostrar e explicar o que é e como age a psicosfera sobre nós, os humanos. Aliás, foi graças a ela que, em 2014, esta palavra e o seu significado atual saíram de uma relativa obscuridade, popularizando-se junto de quem se reviu na atmosfera inquietante que era recriada. A primeira temporada de True Detective, com os seus oito episódios, 'pintou' um quadro que ajudou a explicar, em jeito de premonição, a eleição, dois anos mais tarde, do inesperado Donald Trump.

A trama contada na série soube ir muito além da velha e gasta história de dois polícias que, perdidos nos seus dramas pessoais — nas suas próprias imperfeições –, tentam descobrir o rasto e identidade de um assassino que faz do grotesco o seu requinte. O olhar inquiridor (dos detetives e do público) não se fica pela parte, tenta abranger o todo, de uma forma holística.

A ênfase está na atmosfera (social, económica, industrial e até na própria paisagem natural) que envolve e influencia os acontecimentos, imiscuindo-se em toda a trama, moldando a própria psique das personagens que surgem e se escondem. Como refere o detetive Rust Cohle (num aclamado desempenho do ator Matthew McConaughey), é a “psicosfera” que nos assombra e molda.

Em True Detective, o palco da psicosfera retratada são as zonas rurais, pobres e deprimidas do Louisiana, no sul dos Estados Unidos da América. As velhas e grandes fábricas e indústrias, com as suas enormes chaminés libertando voluptuosas línguas de cinzento, surgem em pano de fundo, como que simbolizando a decadência de toda uma região e o fim próximo de uma era. É o mundo industrial, com uma legião de trabalhadores que precisam de viver e sobreviver, a soçobrar: no fim, sobra o desemprego e a perda de uma identidade, de um sentido para a vida. As frágeis e baratas casas de madeira, débeis lares para alguns dos mais despossuídos da sociedade, são o perfeito postal turístico dos que perderam a fé no futuro e em si próprios. Sente-se uma atmosfera muito particular de desespero resignado ou inconsciente, de quem está abandonado a um destino que está longe de poder controlar.

Pelo meio, uma paisagem natural onde o mato cerrado, os pântanos, os troncos de árvores mortas e os canais de água – já com poucos barcos de carga a fluir por eles – remetem para um mundo à beira do fim, destinado a perder-se na decrepitude (a madeira das casas acaba sempre por apodrecer, tal como as árvores) ou a ficar submerso (e desaparecer) na próxima tempestade que advier, vítima das alterações climáticas.

Muitos dos cenários em que decorre a história de True Detective são reais, como a desta igreja em ruínas com as fábricas e o pântano como pano de fundo HBO

Entra em cena a religião, com as suas histórias capazes de dar conforto a quem já o tinha perdido, os falsos profetas e os pretensos messias que prometem curar a desesperança com a sua grandiloquência e retórica oca, mas que mais não fazem do que explorar quem quase tudo perdeu. Dinheiro, poder, imoralidade, abusos sexuais e pedofilia, tudo se mistura com religião, prosperando entre a pobreza e a miséria endémica. As instituições públicas vão perdendo poder e preponderância, esvaziam-se: a exemplo da educação pública (a escola para todos), que deixa de conseguir chegar às crianças que mais dela precisam, ausentando-se e deixando-as à mercê da sorte que aí vier, porque a economia deixou de pensar no bem público. O vazio que fica é sempre ocupado por outros, munidos das suas segundas intenções: é o que fazem as escolas geridas por instituições religiosas, entidades privadas que em pouco ou nada são transparentes, mas cujas ramificações se estendem ao mundo da política e dos grandes negócios.

Ignorância, medo, desespero e resignação, fanatismo, criminalidade violenta, alcoolismo, consumo de drogas. Uma sociedade em desarticulação. Eis o saldo final deixado pelos poderosos e os intocáveis, os mesmos que, ao longo de True Detective, brincam aos cultos satânicos, sabendo que ninguém se vai importar que crianças de famílias pobres e prostitutas desapareçam ou surjam bizarramente assassinadas.

Desta série, fica uma imagem simbólica: a de crianças, amarradas e vendadas, que acabam por ser submetidas às mais impensáveis atrocidades. No fundo, elas simbolizam todos nós, os frágeis inocentes que não percebem o que lhes sucede às mãos de um poder (político e económico) moralmente decadente, perigoso e dissociado da realidade.

Apesar de assente numa história ficcional, True Detective embrenhou-se, por sua conta e risco, no mundo da não-ficção, numa realidade que, dois anos depois, veria Donald Trump e uma multidão de ressentidos da América, os que perderam o comboio económico dos EUA, a vingarem-se nas eleições presidenciais.