Nos últimos anos, assistimos aos ascender de diferentes tipos de nacionalismo de extrema-direita em muitos países do mundo, tanto em potências mundiais, como a Rússia e os Estados Unidos da América (EUA), passando pela Hungria, Polónia, Turquia e, ainda, esse gigante populacional que é a Índia (mais de 1,3 mil milhões de pessoas). Não incluímos nesta lista o regime totalitário de partido único que vigora na China, um gigante económico com quase 1,4 mil milhões de habitantes.

Perante este cenário nada animador, para quem defende o estado de direito democrático, muitos fazem a pergunta sobre se não estamos perante o regresso do fascismo, ou, pelo menos, de governos que colocam em prática políticas fascistas. Um dos problemas, aqui, é que o uso recorrente do termo 'fascismo' banalizou-se, muitas vezes usado sem qualquer tipo de critério, fora do conceito que representa.

No final de outubro deste ano, mais de 200 académicos de todo o mundo, todos eles especialistas no estudo do fascismo e do autoritarismo, assinaram uma carta aberta onde alertam que a democracia “está a definhar” ou em vias de “colapsar em larga escala”, a nível global. Segundo os seus signatários, “a democracia é extremamente frágil e, potencialmente, temporária, requerendo vigilância e proteção” por parte de todos os cidadãos.

Escrito antes dos resultados das eleições nos EUA, que tiveram lugar a 3 de novembro, a preocupação manifestada no texto não recai apenas em Donald Trump, derrotado e afastado de um segundo mandato na Casa Branca: não obstante, foi o segundo candidato mais votado de sempre, na história dos EUA, logo a seguir ao novo presidente eleito, Joe Biden. Um choque.

“Seja Donald Trump um fascista, um pós-fascista populista, um autocrata ou apenas um oportunista grosseiro, o perigo para a democracia não chegou com a sua presidência e vai muito para além de 3 de novembro de 2020”, salienta a carta aberta. O seu apelo, urgente, é o de que “necessitamos de revelar e denunciar quaisquer e todas as conexões entre os que estão no poder e as forças que usam a violência política para desestabilizar as nossas democracias”.

Mas, afinal, onde é que estão os sinais de fascismo? De acordo com o filósofo político Jason Stanley, da Universidade de Yale, nos EUA, o rótulo de 'fascismo' é aplicável, de forma genérica, “a todos os tipos de ultranacionalismo (étnico, religioso, cultural), com a nação representada na pessoa de um líder autoritário que fala em seu nome”, explica no livro Como Funciona o Fascismo, publicado em 2018.

Exemplos? Em julho de 2016, durante a Convenção Nacional do Partido Republicano, Donald Trump frisou em palco, para todos ouvirem, que “eu sou a vossa voz”. Já em Portugal, e em entrevista ao jornal Observador, ainda neste mês de dezembro, André Ventura, líder do partido de extrema-direita Chega, foi mais longe e puxou pelo divino, afirmando sentir que foi Deus quem lhe deu a “missão de transformar” Portugal: “Sinto que Deus me colocou neste caminho”, afiança.

Para ser mais concreto, ainda segundo Jason Stanley, que também estuda o fenómeno do neofascismo, as políticas fascistas incluem muitas estratégias diferentes, e são precisamente elas a que temos de prestar atenção. Apelar a um passado histórico mítico, a propaganda (o que, atualizado para os dias de hoje, implica recorrer a uma espécie de guerrilha digital nas plataformas de redes sociais, com o intuito de ‘viralizar’ uma ou mais mensagens), o anti-intelectualismo (o qual inclui a negação do que é consensual pela comunidade científica, desde a utilidade das vacinas ao papel ativo das atividades humanas nas alterações climáticas), a irrealidade, a hierarquia, o discurso de vitimização, a lei e ordem, a ansiedade sexual (daí os constantes ataques ao movimento feminista, por exemplo), os apelos ao patriotismo e o desmantelamento do bem-estar e da unidade públicos (o alvo a abater, aqui, é quase sempre o Estado social).

Atenção. “A política fascista não conduz, necessariamente, a um Estado explicitamente fascista, mas não deixa por isso de ser perigosa”, sublinha o académico de Yale. Todavia, o sintoma mais revelador de uma política fascista é o da divisão dentro da sociedade, com “o objetivo de separar uma população em um «nós» e um «eles»”, acrescenta, “apelando a distinções étnicas, religiosas ou raciais, e utilizando essa divisão para moldar a ideologia e, em última instância, a política”.

Os perigos destas estratégias, quando aplicadas, estão na forma como “desumanizam determinados segmentos da população”, escreve Jason Stanley. “Ao excluir estes grupos, limita a capacidade de empatia entre outros cidadãos, o que conduz à justificação do tratamento desumano”.

Outra ameaça, a qual está bem patente nos EUA, atualmente, é o da normalização do discurso que contém um ou mais dos ‘ingredientes’ acima descritos. E, por regra, o que parece normal costuma ser visto como inócuo ou positivo, sem motivos para nos preocuparmos.

Tal como explicam o filósofo Joshua Knobe e o psicólogo Adam Bear, num artigo que escreveram em 2017 para o jornal norte-americano The New York Times, as consequências do comportamento e da linguagem de Donald Trump, durante a sua presidência, deixaram um rasto difícil de apagar: “Estas ações não estão simplesmente a começar a ser consideradas mais típicas, estão a começar a ser consideradas mais normais. Em resultado disso, passarão a ser consideradas menos incorretas e, consequentemente, menos dignas de provocar indignação”. Em suma, o que antes era impensável, até do ponto de vista moral, acaba por se tornar tolerável e normal, um fenómeno (uma armadilha em que se cai) que é típico de sociedades que transitaram da democracia para o fascismo.

Apenas metade dos europeus está satisfeita com a democracia na UE

O último Eurobarómetro da União Europeia (UE), publicado a 23 de outubro, revelou dados pouco reconfortantes. A crer nos resultados da sondagem, realizada em julho e agosto a quase 27 mil pessoas (dos 27 Estados-membros, mais Reino Unido e países candidatos a entrar na União), apenas 43% dos inquiridos diz confiar na UE, enquanto a confiança nos governos e parlamentos nacionais ficou-se pelos 40% e 36%, respetivamente.

A atual situação económica é o que mais preocupa os que responderam ao inquérito, sendo que “64% dos europeus consideram que a situação é «má» e 42% pensam que a economia do seu país irá recuperar dos efeitos adversos do surto do coronavírus «em 2023 ou posteriormente»”, refere o documento com os resultados do Eurobarómetro. Muito pessimismo, portanto.

No que respeita às medidas tomadas pela UE para combater a pandemia, 45% dos europeus dizem-se «satisfeitos», contra 44% de «não satisfeitos». Tudo muito dividido.

Pior. Só pouco mais de metade afirma estar satisfeita com o funcionamento da democracia na UE (53%), enquanto a percentagem de inquiridos que «não estão satisfeitos» aumentou três pontos percentuais, para 43%, em relação a outono de 2019.

E Portugal? Se atentarmos, em exclusivo, nos dados que o Eurobarómetro fornece sobre as respostas dadas pelos portugueses, descobrimos que 56% confia na UE, 87% (um número esmagador) considera que a situação económica é «má», 53% está pessimista quanto à recuperação da economia nacional, enquanto 58% está satisfeita com as medidas da UE para travar a pandemia. Quanto às maiores preocupações, a saúde (56%), mais do que a situação económica (52%) ou o desemprego (40%), surge como a principal.

Por sua vez, os resultados de um dos inquéritos da Agência dos Direitos Fundamentais da União Europeia, igualmente publicado este ano, mas com base em dados de 2019, mostra que a larga maioria dos europeus (60%) não acredita que os principais partidos e políticos se preocupam com eles: em Portugal, a percentagem é de 52%. O número chega aos 73%, a nível europeu, no que se refere aos cidadãos que atravessam dificuldades financeiras. Responderam a esta sondagem 35 mil pessoas de todos os Estados-membros, do Reino Unido e da Macedónia do Norte.

Em giza de conclusão final, paira a ideia de que a União Europeia precisa, no seu todo, de encontrar respostas urgentes para fazer face ao sentimento de falta de confiança em relação à democracia, aos partidos e à classe política.

Existe um fascista dentro de cada um de nós?

Já não é novidade. Os grupos radicais de extrema-direita começam a organizar-se em Portugal, nomeadamente os de ideologia neonazi, estreitando laços com organizações semelhantes de outros países. Entretanto, o recrutamento de novos membros por estes grupos, no nosso país, preocupa os serviços secretos nacionais (o SIS), ao ponto de os denunciar como uma “ameaça à segurança interna”.

A questão, no que se refere à ascensão de grupos ou partidos que defendam políticas fascistas – o que não significa que estas organizações sejam explicitamente fascistas, há que recordar –, é que eles parecem andar à procura de um homem forte, uma só voz, em torno do qual gravitar, um nome capaz, ainda, de congregar os cidadãos ressentidos, os que perderam a confiança na política que se faz em democracia.

Num artigo publicado antes de Donald Trump ter ganho as presidenciais de 2016, e posteriormente reeditado pela revista Scientific American, os psicólogos Stephen Reicher e Alexander Haslam explicaram como é que este homem de negócios, e figura do espetáculo televisivo, usou com perícia alguns dos princípios da psicologia de grupo. Um dos exemplos foram os seus famosos comícios políticos, os quais, segundo os dois investigadores, eram “festivais” que conseguiam criar um sentimento de identidade comum entre quem marcava presença.

Os comícios tinham sucesso no seu intuito porque várias características semelhantes podem ser observadas nos apoiantes de Trump, salientam Reicher e Haslam. Além de uma falta de confiança na política, nos políticos e nas instituições políticas, os seus seguidores são, tradicionalmente, pessoas que perderam o comboio da transição económica nos Estados Unidos, de uma indústria manufatureira para uma outra mais diversa, global e assente na informação. Trata-se de norte-americanos que fazem parte de um setor da economia em declínio, afetado por acordos de comércio-livre e pela competição dos produtos de baixo-custo, produzidos noutras partes do mundo. O sentimento de ameaça ao seu modo de vida, uma ameaça que entendem como vinda do interior do país e de fora, parece, assim, ser um elemento que os identifica e une.

Para o sociólogo Richard Sennet, da London School of Economics, quando chega o momento de analisar o eleitorado de Trump, ou seja, os 71 milhões de norte-americanos (um número impressionante) que nele votaram nas últimas eleições, há que que ter em conta os seus sentimentos de raiva e desprezo, canalizados, perniciosamente, como forma de obter auto-estima.

“A base de apoio a Trump é animada por uma espécie de jogo de soma zero perverso, que permite que as pessoas se sintam melhor consigo mesmas colocando os outros abaixo de si. Inversamente, o reconhecimento de que os outros têm necessidades e direitos próprios parece ameaçar as suas necessidades e direitos”, frisa ao jornal The Guardian. “Este jogo de soma zero alimenta a hostilidade dos apoiantes de Trump em relação aos outros. Em última instância, é um jogo em que o jogador não pode ganhar – colocar os outros abaixo de si não pode, no fim, tornar alguém numa pessoa mais forte. Estas pessoas têm uma espécie de vício para com este jogo. Elas tentam sentir-se melhor consigo mesmos, mas não conseguem, então continuam a jogar, tentando converter a sua raiva e desprezo em autoestima. A consequente frustração empurra-os cada vez mais para o extremo.”

Paul Mason, jornalista britânico que acompanhou atentamente a efervescência política da última década, não considera que líderes como Donald Trump sejam fascistas, tal como não o são a maioria dos que vão aos seus comícios ou lhe dão o voto nas urnas. Acima de tudo, essa massa de pessoas revela “fadiga interior e resignação”, teoriza, recuperando as palavras do sociólogo alemão Erich Fromm, quando este analisou, em 1941, a ascensão do nazismo e a prontidão com que as pessoas se submeteram ao fascismo.

“Trump compreendeu que pessoas cansadas não querem lógica nem princípios; e também não querem o tipo de liberdade que a direita libertária oferece”, começa por resumir Paul Mason, em Um Futuro Livre e Radioso - Uma Defesa Apaixonada da Humanidade (2019). “Na verdade, temem a liberdade. O que querem é um líder que se eleve acima da lógica e da verdade e lhes diga a todos que os seus preconceitos mais íntimos são justos.”

Não obstante, e se fizermos fé no que escreveu o sociólogo francês Michel Foucault, em 1977, em Introdução à Vida Não-Fascista, não é com as organizações de extrema-direita que temos, acima de tudo, de nos preocupar e oferecer resistência. É com “o fascismo em todos nós, nas nossas cabeças e no nosso comportamento quotidiano, o fascismo que nos leva a adorar o poder, a desejar precisamente aquilo que nos domina e nos explora”.