“Instalei o Tinder pela primeira vez em setembro”, conta Sara. Agora, “com menos oportunidades para conhecer pessoas”, e depois de ter passado o primeiro confinamento sozinha, Sara não descreve o que procura nas aplicações, mas assume que dá mais atenção às pessoas que pretendem uma relação.

Marcou encontros ao ar livre e, quando as regras assim o permitiam, almoços e um copo de vinho numa esplanada. Depois de alguns encontros em público, chegou a marcar em casa.

“Eu não tenho muito medo do vírus, tenho mais de encontrar algum maluco. O perfil pode ser falso, não sei...”, explica Sara. Combina primeiro num local público e dá preferência a quem tenha amigos em comum. Quando chega ao local, costuma tirar a máscara para poderem ver o rosto um do outro.

“Tudo bem? De onde és? O que fazes?”

Tiago usa as aplicações há muitos anos e continua a fazê-lo frequentemente. Diz que funcionam como um bar virtual e que, tal como explica “às miúdas” nas apps, não está à procura de nada concreto, diz que não cria expetativas e identifica-se com o conceito: “go with the flow”. Guarda muitas histórias de sexo casual, amizades que começaram num match ou relações de curta duração.

Vai mantendo os encontros com alguma facilidade e diz que, desde que a pandemia começou, “é mais fácil chegar a sexo”.

“Cortam-se muitas etapas, não se pode ir a lado nenhum, vai-se para casa, bebe-se um vinho e a coisa acontece facilmente...”

Ao contrário de muitos solteiros, Tiago afirma que não se sente em suspenso. “Adapto-me muito bem e não sinto que precise de uma relação”, explica. Para ele, a maior dificuldade tem sido não poder estar com os amigos, sente muito a falta desses momentos e de “conhecer uma miúda num bar”.

“As pessoas estão com mais necessidade, tanto homens como mulheres querem muito extravasar”, comenta Tiago, que divide apartamento com um amigo e prefere marcar os encontros em casa delas ou num hotel, “como já aconteceu algumas vezes”.

Mais descomprometido, não tem muita paciência para estar no chat dias seguidos. Prefere os encontros mais imediatos, mas também se preocupa em perceber quem é a pessoa com quem se vai encontrar – “Não por medo, mas para não perder tempo. Tento confirmar se não é um perfil falso, ou um homem, sei lá...”

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Tal como Sara, também Júlia precisa de se envolver mais nas palavras antes de marcar um encontro. Já usava as aplicações, mas diz-se agora menos disponível para correr riscos e adianta: “não funciona a abordagem de trocar duas palavras e ficar claro que nos vamos encontrar para sexo”.

Júlia quer ser mãe e encontrar alguém para construir uma família. Esta suspensão pandémica complica-lhe a procura: “E eu que se calhar nunca mais vou ter filhos?”, pergunta-se. Durante este período, Júlia já teve algumas relações casuais com pessoas que não são à partida o que procura e refere: “Não ter estes encontros desesperar-me-ia mais e também trazem algum contacto humano. O sentimento de desejar e nos sentirmos desejadas continua a ser muito importante.

Amor e sexo como bens de primeira necessidade

Numa pauta musical há um símbolo que traduz a suspensão de uma nota no tempo e que se chama fermata. “O lockdown é uma longa fermata para as pessoas que querem encontrar a realização amorosa, constituir família ou mesmo para quem quer ser mãe ou pai solteiro”, a metáfora é de Ana Alexandra Carvalheira, psicóloga especialista em Sexualidade e investigadora do ISPA – Instituto Universitário.

Na crónica Procura-se parceiros: Solteiros com a vida amorosa em atraso, a psicóloga salienta que “estes tempos de privação do abraço e da interação física, da paixão e do sexo vêm confirmar inequivocamente o que sempre soubemos: que o amor e a sexualidade são bens de primeira necessidade”.

“Somos seres feitos para o contacto físico e amoroso com outros seres humanos e a privação disto traz sofrimento”, continua no mesmo artigo.

Na procura por uma conversa inteligente, divertida e que lhe traga interesse, Júlia explica: “A sucessão mais habitual de perguntas é: ‘Tudo bem? De onde és? O que fazes?’ Quando esta tríade se verifica, já sei que não vai dar em nada.” Sente que “as pessoas estão ali de corpo presente, sem ter muita disponibilidade para conhecerem e se darem a conhecer”, ao mesmo tempo que desconfia que “quem quer ter uma relação séria não gosta verdadeiramente de estar ali”.

Sara reitera esta ideia. “É muito cansativo e é preciso investir muito para encontrar alguém nas aplicações”. Porém, entre os riscos a medir, há também mais tempo para se fazer conversa e salienta um possível aspeto positivo: “Se calhar quando se está semanas a conversar com alguém pode significar que há verdadeiro interesse... é um bom sinal”.

Criatividade, precaução e desejos consolidados

Consciente e bem decidida da sua posição, Júlia explica-a: “Não sinto que esteja a restringir a minha vida amorosa. Houve um exercício de medir os prós e os contras e de decidir arriscar. A grande parte dos meus amigos estão casados e têm filhos, eu já não saía tanto. Não é que a pandemia tenha trazido uma redução tão drástica à minha vida social, mas decidi que não queria parar a minha vida. Tenho 37 anos, vivo sozinha e não sei quanto tempo isto vai durar...”

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No equilíbrio entre a saúde pública e a pessoal, e assumindo “o sexo como uma parte normal da vida”, o Departamento de Saúde de Nova Iorque publicou um documento com algumas recomendações para manter uma vida sexual saudável em tempos de pandemia.

Recomenda-se sexting ou encontros por vídeo e, na hipótese de o encontro ser físico, que se usem máscaras e se evitem beijos. Acrescentam ainda a ideia de “tornar as coisas kinky”, encontrando formas criativas de minimizar o contacto cara a cara.

No Bumble, outra aplicação de dating, podem ler-se recomendações da OMS e os utilizadores podem escolher se estão interessados em marcar encontros virtuais ou físicos, ou ar livre ou em espaços fechados, com ou sem máscara. Esta informação é mostrada assim que há a possibilidade de se iniciar um diálogo.

Independentemente destas novas opções ou das indicações governamentais, quem está ativamente à procura de parceiro parece ter mais desconfianças de quem pode encontrar do que o receio de apanhar o vírus.

Ambos os riscos, assumem-nos como deles. Tiago explica: “Não vou pensar que vou apanhar a doença, penso sempre que isso não vai acontecer. Não faço questões sobre com quem a pessoa está ou deixa de estar. Se estivesse com isso na cabeça, não iria. Assumo o risco.”

Com a privação de interação física imposta, Ana Alexandra Carvalheira recomenda que este tempo possa ser aproveitado “para nos conhecermos melhor, nos melhorarmos e tornarmo-nos mais conscientes das nossas necessidades emocionais”. “É tempo de consolidar desejos, agora fica mais claro o que queremos e o que não queremos”, conclui a especialista.

Entre a procura da paz e a banalização do sexo

Rafael esteve durante muitos anos nas aplicações de dating, mas entretanto decidiu fazer log out e prefere estar sozinho. Não pelo medo de uma infeção mas para manter a paz de espírito. “Nesta altura, acho que me faz mal andar a dispersar os meus sentimentos e emoções”, explica.

No início da pandemia, o seu plano era encontrar um homem com quem pudesse ter relações sexuais regulares, mas ao mesmo tempo construísse uma relação leve, “para aguentar este tempo de isolamento e haver uma entreajuda emocional”.

A viver sozinho e em teletrabalho, considerava também que poder apanhar a doença seria um risco só dele. Estava disponível, mas não encontrou o que procurava. Diz que é solteiro há tantos anos que já aprendeu a ser feliz assim.

“Já antes da pandemia não era muito fã das apps mas era muitas vezes o último recurso”, explica, porque contornam “o inconveniente da vida real de não se ler na cara a orientação sexual de alguém”. Mas ao mesmo tempo é muito crítico com o que se passa na comunidade LGBT dentro deste mundo virtual.

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Rafael fala-nos sobre a banalização do sexo e como isso o cansa. Considera que as aplicações funcionam como “um catálogo de pessoas”. Nas aplicações como o Grindr, “a intimidade desenvolve-se muito sobre o que se gosta ou não sexualmente, sobre os fetiches, é tudo muito físico e há muito body shaming”.

Refere-se ainda a “comportamentos tóxicos recorrentes, em que são escritas coisas horríveis, há conversas sem rumo e até mesmo sem resposta”. A crítica, a rejeição e o ghosting foram os principais motivos para Rafael querer sair das aplicações.

“O interesse é tão saltitante que há pessoas que não dão satisfação nenhuma, desaparecem, é um verdadeiro desrespeito uns pelos outros e uma objetificação. É horrível, parece que estamos a trocar cromos. Estamos a falar de relações e de seres humanos”, comenta Ana Alexandra Carvalheira.

Apagando estes recursos tecnológicos e com a pandemia em curso, a Rafael resta esperar que possa voltar ao seu círculo de amigos e aos planos culturais e sociais, que lhes permitem conhecer pessoas num contexto que lhe traz mais serenidade.

Ultrapassar o vazio a cruzar fronteiras

O desejo e a sedução parecem conceitos difíceis de combinar com o impacto do confinamento na saúde mental. “A pandemia tem um impacto grande no nosso humor e há uma tendência para se ficar mais deprimido”, esclarece Ana Alexandra Carvalheira. Há estudos que referem que, durante a pandemia, os solteiros têm mais probabilidades de sofrer de depressão, ansiedade e insónia.

“Algumas pessoas já nem têm vontade de ligar aos amigos, quanto mais procurar um namorado”, conclui a investigadora sobre a difícil gestão em procurar o equilíbrio ao mesmo tempo que se ganha motivação para procurar parceiro.

Maria contraria esta tendência e muitas outras. Diz-se tão namoradeira que nem a pandemia a deitou abaixo. Chegou a manter algumas relações simultâneas e sem compromissos, mesmo durante o confinamento. Mas a “repetição sem propósito” e o “sentimento de vazio” fizeram-na querer algo diferente – “talvez, em momentos delicados como este, a pandemia mostre a importância de termos um companheiro e alguém com quem podemos realmente contar”, explica.

A par da pandemia, Maria acha também que foi o “desgaste da vida” que a levou a querer algo diferente e fez o compromisso de se envolver apenas com quem sentisse uma ligação maior.

Ana Alexandra Carvalheira explica que “a privação de interação física, social é também uma privação emocional e este longo confinamento, com períodos de maior ou menor intensidade, facilitou o confronto de cada um de nós com algumas questões, com as necessidades, as misérias, com o que se deseja e a tomada de consciência”.

Maria concorda: “A pandemia faz-nos reavaliar a nossa forma de viver e o que compõe uma experiência mais rica”.

No conflito entre os seus desejos e a pandemia que lhe condicionava a vida social, conheceu em teletrabalho um homem “a quem já tinha deitado o olho uma vez numa festa”. Vivem em países diferentes, ela em Portugal, ele na Alemanha. Agora, restava-lhes manterem o contacto virtual: primeiro uns emojis a umas stories no Instagram e rapidamente conversas de Whatsapp de horas sem fim e de interesse evidente.

“Ele convidou-me para ir ter com ele à Alemanha, mas era tudo muito complicado, com as regras e quarentenas”, e durante um tempo adiaram o encontro. Foram falando, bebendo vinho, combinando chats e voltaram à ideia de sair dos ecrãs. “Tinha de ficar dez dias em quarentena em casa dele. Era muito arriscado, sem poder sair, ir a um bar, fazer outras coisas, e se corresse mal, não tinha válvula de escape...?”.

Alinharam expectativas e decidiram arriscar, combinando que na pior das hipóteses ficariam amigos, beberiam vinho e faziam companhia um ao outro durante esses dez dias.

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Quando se encontraram pela primeira vez, na estação de comboios, estavam ambos de máscara. Quando acordaram no dia seguinte, estavam “já meio apaixonadinhos, a falar assim meio idiotas”, brinca Maria, que entretanto prolongou a estadia na Alemanha por mais uma mão-cheia de dias.

“A pandemia acelerou tudo, há um convívio diário que é muito intenso. Coloca-nos de frente com as irritações, implicações e tem de se lidar rápido, conversar melhor, discutir de novo; tendo em conta a conjuntura, acho que estamos a ir muito bem, há um nível de intimidade muito profundo que cresce muito rapidamente”, explica.

Uma das primeiras tensões entre este recém-casal prendeu-se com a exposição ao vírus e aos seus riscos. “Quando comecei a ir para a Alemanha fiquei muito neurótica e preocupada. E se eu vou para lá e o contamino? Fiz cinco testes de COVID-19 num mês. Havia também o receio de apanhar o vírus e depois não poder voar e não podermos estar juntos... isto é uma fonte de tensão”, conclui Maria.

Muitos PCR depois, cancelamentos de voos, marcações, reagendamentos à mistura e a somar às alterações de regras tanto na Alemanha como em Portugal, contornam a pandemia e assumiram uma relação. Têm o plano de ver como fluem as coisas e arranjar uma forma de viverem no futuro no mesmo país.

O futuro diluído entre a ânsia de sair e os pés no chão

Epidemiologistas, especialistas de estatística, médicos, políticos e outros tantos arriscam uma possível data para o final da pandemia. As expectativas para o levantamento das restrições são muitas e só quase superadas pelas tantas antevisões.

Relembram-se muitas vezes “os loucos anos vinte” do século passado na ideia de um grande clima de liberdade e de libertação, como aconteceu após a gripe espanhola. Ana Alexandra Carvalheira contraria esta visão e partilha a sua ideia: “Acho que não vamos ter uma explosão de alegria com a sensação de que podemos tudo. Acredito que vai ser algo muito diluído, o regresso ao normal vai ser algo gradual...”

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Tiago afirma que tem um ritmo de vida diferente: “ando a deitar-me mais cedo, acordo mais cedo”, ao mesmo tempo que diz que já não sabe se tem energia para uma grande noitada de copos, por muitas saudades que tenha delas.

Também Sara tem vindo a aprender e a apreciar o ritmo mais lento dos dias: “Ando a fazer os meus projetos freelancer e durmo muito. É muito chato não poder estar com amigos, mas confesso que estou a gostar desde slow down, sem a pressão de ter de ir a algum lado ou fazer muitas coisas.”

Sara tenciona continuar a usar as apps e ir marcando “encontros higiénicos” para contornar a fermata ao mesmo tempo que equaciona a possibilidade de marcar alguns encontros virtuais.

Rafael diz que tenta manter-se positivo numa ginástica mental de criar planos futuros. “Estou com trabalho, saúde e amigos. A minha família está bem. O meu subconsciente diz-me para controlar o corpo e o desejo e que isso torna a minha vida mais fácil. É aguentar.”

Também questionada sobre o que acha que vai mudar no futuro na sua vida amorosa, Júlia dá uma grande gargalhada e solta um sarcástico “nada”. Relembra que continua à procura de parceiro, mas acrescenta mais seriamente: “Vamos estar todos mais leves, felizes e se calhar mais disponíveis. Na prática, pode não mudar muita coisa, mas é um peso que nos vai sair de cima.”

*Excetuando a psicóloga Ana Alexandra Carvalheira, todos os entrevistados preferiram o anonimato e os nomes neste artigo são fictícios para proteger a sua identidade.