Quando a sociedade põe a culpa na vítima e não no agressor, algo de muito errado se passa. Infelizmente, esta é a realidade que assistimos, muitas vezes, nos casos de violência contras mulheres em Portugal.
O tema voltou a estar na ordem do dia depois de divulgados dois casos recentes de homens que atacaram mulheres.
A primeira, Conceição Figueiredo, desaparecida desde 18 de maio em Oliveira do Bairro, cujo corpo foi encontrado no domingo pela Polícia Judiciária. Jair Pereira, de 54 anos, ex-namorado da vítima e principal suspeito do crime, ainda está em fuga. No ano passado, 22 pessoas foram assassinadas em Portugal, vítimas de violência doméstica, crime que já causou 700 mortes no país nos últimos 25 anos.
O segundo caso foi um homem que esfaqueou 150 vezes uma mulher num parque de estacionamento de Lisboa, depois de esta ter negado continuar uma relação que havia sido iniciada através de uma aplicação de encontros. A vítima sobreviveu, mas se encontra hospitalizada. O agressor, André Piteira Afonso, está detido.
Além de terem sido violentadas por homens, o que mais têm em comum estas vítimas? Para muitas pessoas, inclusive para uma conhecida apresentadora da televisão portuguesa, puseram-se jeito. Foram elas as culpadas pelas suas agressões e mortes, foram elas que se puseram a jeito para morrer. Mas quem é que se põe a jeito de morrer? Ninguém, no seu pleno juízo.
E se a frase fosse invertida: os homens puseram-se a jeito de matar? Faz mais sentido e é assim que a sociedade deveria começar a encarar a violência não só contra as mulheres, mas contra qualquer ser humano. Ninguém quer ser agredido, violado, violentado ou morto. A violência é crime e deve sempre condenar quem a cometeu.
Infelizmente, as consequências de uma sociedade patriarcal, misógina e machista estão muito presentes, continuando a perpetuar que as mulheres são as culpadas devido a determinados comportamentos. “Estava a andar sozinha à noite na rua?”, “estava com um decote?”, “foi para a discoteca?”, “conheceu-o através do Tinder?”. “Pôs-se a jeito” – responderão muitos sem nem pensar no disparate que estão a dizer.
As mulheres põem-se a jeito, sim, de viver, de afirmarem-se como são, relacionarem-se com quem quiserem, fazerem o que lhes apetece e serem livres. Mas esta sociedade de homens que odeiam as mulheres ainda não aceita isto e quer, a todo o custo, que sejam elas as culpadas pelos crimes que eles continuam a cometer.
Numa altura em que crescem as vozes machistas e misóginas que questionam, até, direitos adquiridos e consagrados na lei, é essencial medirmos as nossas palavras e colocarmo-nos no lado de quem mais sofre os efeitos nefastos da violência.
P.S. Ontem, quando regressava a casa após um jantar de trabalho, já passavam das 22h, vi um homem a caminhar sozinho numa zona pouco movimentada da área onde vivo. Lá ia ele, descansado, com os seus phones no ouvido, de calções, sem ter, talvez, noção do privilégio que tem de andar sozinho à noite na rua sem a preocupação de poder ser atacado por outra pessoa. Se, por um acaso, tal acontecesse, será que a sociedade iria comentar que ele se pôs a jeito?