O absurdo é este: o país que se escandaliza com a demolição dos bairros ilegais pouco ou nada se ralou com a total ausência de condições das barracas em que aquelas pessoas viviam. Os que se chocam hoje — da Proteção de Menores aos signatários de cartas abertas, passando pelos ativistas que se alimentam da polarização — não se viram a rasgar as vestes quando aquele bairro de lata estava de pé e crescia, como não levantam uma sobrancelha em indignação com as lixeiras onde vivem tantas outras famílias, em ajuntamentos de paus, pedras e placas de zinco como os que se proliferaram pelos arredores das grandes cidades no final dos anos 70, agora inchados graças às políticas de descontrolo migratório.
O presidente da câmara que quer cauterizar uma chaga social não é o vilão desta história. Somos todos os que deixámos a ferida abrir-se e aumentar, indiferentes às consequências porque a dor não era nossa. Porque nada se fez para travar ou impedir aquela miséria, aponta-se o dedo a quem quer acabar com um flagelo social. Outro galo cantaria se aquelas famílias viessem instalar-se na vizinhança de quem condena as demolições do conforto dos seus apartamentos, mas, ao longe, é fácil atacar a decisão de Ricardo Leão. E estes despejos, para mais, feitos por quem já há uns meses defendera que quem não paga renda e comete crimes devia perder os apoios sociais, selaram-lhe o epíteto de "xenófobo, inimigo dos pobres e oprimidos". Populista e não socialista, diriam Alexandra Leitão e António Costa, que já o queriam afastado do PS e de cargos políticos. "Ricardo sem coração", repete o eco.
Há incompreensão e medo nas famílias despejadas, que preferem dormir ao relento do que afastar-se da única "casa" que conhecem, dos vizinhos que se fizeram os únicos amigos aqui tão longe. É compreensível. O que não é compreensível ou aceitável é que se atire a quem faz cumprir a lei (demasiado tarde, é certo, porque se deixou crescer o problema a esta dimensão).
Quem devia mobilizar-se por soluções dignas e ajudar a levar aquelas pessoas a uma saída que lhes melhore a vida, quem devia bater-se por que essa saída fosse cumprida e aquelas famílias verdadeiramente acolhidas, prefere proteger a indignidade que é viver num bairro de lata. É isso que faz quem inflama o espaço mediático contra os autarcas e usa um desastre social para fazer valer argumentos de outras batalhas.
Compara-se o incomparável, justifica-se a falta de acesso destas pessoas à habitação com o "excesso de turismo", com as "rendas milionárias", com os bairros gentrificados, como se fossem o imobiliário de luxo e o alojamento local a fazer disparar os preços das casas e não a total ausência de políticas de habitação e a paralisação da construção pública, congeladas mais de uma década. Muitíssimo bem acompanhadas, aliás, pelos delírios de expropriação e derivas anti-propriedade privada dos ex-ministros da Habitação Pedro Nuno Santos & Marina Gonçalves, que ao tentar forçar o mercado a fazer o trabalho de que os governos de António Costa lavaram as mãos, criaram medo nos proprietários que até ponderavam abrir casas ao arrendamento.
Os preços não sobem porque as políticas criadas no último ano falharam. Os preços das casas continuam a subir porque, durante uma década, fez-se uma média 17 apartamentos por ano.
Os preços não sobem porque na Avenida da Liberdade só cabem milionários e porque quem vivia nos bairros típicos vendeu as casas a investidores que as recuperaram e agora esperam ter delas rendimento. Os preços das casas continuam a subir porque a resposta social não existiu durante os dez anos em que a imigração mais aumentou, acrescentando 1,5 milhões de pessoas às que aqui viviam.
Os preços não sobem porque alguns senhorios, escaldados com décadas de rendas congeladas e falta de proteção e de ação contra inquilinos incumpridores e abusadores, preferem fechar os apartamentos, pô-los em AL ou abri-los a quem paga melhor. Os preços das casas continuam a subir porque dos repetidos anúncios de que se iria pôr fim à habitação indigna até aos 50 anos do 25 de Abril, construir e reabilitar aos milhares e recuperar o parque público para cumprir o papel do Estado, nada saiu do papel, nada aconteceu quando se apagaram os holofotes que iluminaram os (ir)responsáveis políticos nessas comunicações.
Ninguém gosta de ver velhinhos, doentes, crianças, famílias a sobreviver ao lado das pilhas de entulho que eram os seus poucos bens. Mas aparentemente ninguém se choca com a forma como viviam antes, entre paredes improvisadas de lixo, sem saneamento básico, com a eletricidade puxada diretamente dos postes camarários. Como vivem ainda milhares de famílias — como os que construíram uma sociedade paralela no Segundo Torrão, na Trafaria; como os que se amontoam no bairro de Santa Marta do Pinhal, em Corroios; como os que chegam a pagar 300 euros por um quarto numa barraca ilegal na Penajoia, em Almada. São os turistas e os benefícios fiscais para os jovens comprarem casa que inflacionam os preços? Ou é o total desprezo a que foi votada a agenda da habitação na última década pelos mesmos que agora se advogam fazedores de soluções?
Não haja enganos: os desalojados do bairro do Talude nunca tiveram casa. Não era em casas que viviam. São habitantes de um mundo que a maioria prefere ignorar e que se desenvolve sem regras, à margem da sociedade. Sim, é preciso soluções urgentes para aquelas famílias — como para as dos outros bairros de lata que voltaram a ocupar as franjas de várias cidades — mas ficarem em barracas não é uma solução. Uma casa a sério, é. Mesmo que seja longe de Loures. É nisso que devíamos estar empenhados, em acabar com todas as barracas e encaminhar quem nelas vive para as saídas que existem, em lugar de lhes contar as noites passadas ao relento.