Tenho defendido em vários artigos a Democracia Direta ou Participativa. Mas temos de manter a nossa honestidade intelectual e, depois de termos apresentado todas as vantagens potenciais desta metodologia, abordar também as suas potenciais desvantagens e — numa ótica mais construtiva — as formas de as mitigar e anular.
1. O Problema
É preciso levar os cidadãos a participar. Alguns investigadores julgam que é preciso que pelo menos 10% de uma dada população ou comunidade participe num referendo para que o processo seja minimamente representativo da vontade geral.
A Solução
De facto, nada pode "obrigar" os cidadãos a participarem se estes, de facto, não o quiserem fazer... mas há formas de intensificar essa participação, passando a listar de forma sumária algumas delas:
- O voto, mais do que um direito, é um dever cívico, um dever para com a comunidade em que estamos inseridos, para com quem nos apoia e para melhorar o contexto em que vivemos. Assim, não é absurdo aplicar multas a quem recusar cumprir esse dever cívico. Isso mesmo já acontece em vários países do mundo (como o Brasil) e poderá ser uma forma de mitigar as baixas participações em sufrágios eleitorais.
- A informação apresentada aos eleitores deve ser sumarizada e simplificada até se tornar inteligível por não técnicos. Decisões que estejam encadeadas noutras, devem ser apresentadas em conjunto, com resumo do projeto global (por exemplo, a expropriação de um terreno deve ser explicar a que se destina). Essa informação deve estar sempre disponível online e sob a forma física.
- O voto deve ser simplificado. O voto físico em urna deve ser complementado com a possibilidade do voto eletrónico seguro (nomeadamente com o cartão do cidadão) via Internet e com o voto antecipado.
- Deve existir uma ampla divulgação em todos os meios de comunicação de cada sufrágio, dos seus objetivos e propósitos. Todas as decisões que resultem de processos participativos (por ex. obras municipais que resultem do orçamento participativo) devem ter claramente indicada que resultaram de um destes processos.
2. O Problema
Decisões mais complexas não serão facilmente compreensíveis por todos.
A Solução
O Estado deve fazer um esforço consistente e prolongado na formação escolar e académica dos seus cidadãos, mantendo em todos os níveis de ensino, disciplinas de educação cívica e política e implementando nas escolas mecanismos democráticos internos que instruam os estudantes sobre os métodos e práticas democráticas. Paralelamente, os mecanismos da Democracia Líquida ou Participativa (usados no Partido Pirata alemão) podem também ser úteis, fazendo com que os cidadãos deleguem num delegado especializado num dado ponto e em quem confiem amplamente o seu poder de voto.
3. O Problema
Os cidadãos poderão ser mais suscetíveis a medidas mais populistas do que a outras que, sendo necessárias, implicam mais sacrifícios. Um líder mais carismático e populista pode fazer impor a sua vontade e, em último grau, colocar em risco a própria democracia.
A Solução
Na realidade, os eleitores tendem a votar com alguma sabedoria, especialmente após o dito líder populista ter dado já provas efetivas dos resultados concretos das suas propostas e não os valorizam. Na Suíça, o exemplo mais perfeito e antigo de aplicação dos mecanismos da democracia direta, temos um baixo nível de despesa pública, corrupção e uma boa gestão do património público e do funcionalismo: a sua população (uma das mais educadas do mundo) vota não consoante tendências populistas e demagógicas, mas consoante aquilo que mais convém ao país e às suas comunidades regionais (cantões).
4. O Problema
A Democracia Direta parece funcionar bem apenas em pequena escala. Referendos nacionais são caros de organizar e divulgar devidamente e quanto maior a escala da votação, maior o risco de vencer um líder ou uma proposta mais populista.
A Solução
A descentralização, com a transferência de um número crescente e decisivo de poder político até à escala municipal resolve o problema da escala. O problema do custo pode ser resolvido com o recurso a votações seguras via Internet (com o chip e leitor do Cartão do Cidadão).
5. O Problema
Alguns podem subverter o sistema e levar a votação questões irrelevantes ou ridículas.
A Solução
Deve existir um quadro constitucional que permita que apenas temas de evidente interesse nacional ou local possam ser referendados.
Conclusão
A construção de uma Democracia Direta funcional, robusta e estável não é um processo simples nem isento de obstáculos. Exige uma transformação profunda do nosso sistema político, legal e cultural e, sobretudo, uma mudança de mentalidade coletiva. Tal como demonstrado, os desafios que se colocam a este modelo são reais: desde a participação insuficiente até à ameaça de populismos, passando pelas dificuldades logísticas e pela complexidade de certos temas. No entanto, estes problemas não são argumentos contra a Democracia Direta, mas sim alertas para a necessidade de desenhar mecanismos sólidos de mitigação, como os que aqui propomos.
Avançar para uma democracia mais participativa implica confrontar interesses instalados, nomeadamente os de estruturas partidárias fechadas sobre si mesmas. Mas essa transformação pode — e deve — acontecer dentro das regras do jogo democrático, com cidadãos organizados, com novos partidos ou com alianças reformistas nos partidos existentes.
A história mostra que nenhuma conquista democrática foi fácil. A próxima poderá ser esta: trazer a decisão política de volta às mãos de quem verdadeiramente importa: os cidadãos.
Queremos autarquias que sejam palco de carreiras políticas ou queremos comunidades que sejam laboratórios vivos de democracia?
Rui Martins é fundador do Movimento Pela Democracia Participativa