Quando o pai ou a mãe ficam gravemente doentes. Ou sem mobilidade até ao ponto de viverem com uma sonda. “Viverem” no sentido paupérrimo do verbo. Os filhos ficam com as emoções injetadas como agulhas na pele, obrigados a sentir algo que não era suposto (não avisado), na altura de escolher um cuidador que não pode ser o próprio filho ou um irmão ou outro parente (porque nem os há, ou não estão ‘dispostos’). Ou nos casos em que o pai ou mãe não têm uma pensão que suporte o pagamento das instituições e lares e são hienas do ecossistema da saúde.

Claro que concordo que os filhos devem pagar nos casos em que os pais não podem. Porém, e se esses filhos mal têm o suficiente para pagar as despesas básicas que alimentam os seus próprios filhos?

Um busílis. E que a qualquer um pode acontecer.

Sabem quanto isto acontece? Quando o serviço social ou o médico de família nos “pede” para preencher um conjunto de documentos em que temos de assumir a lucidez do pai ou da mãe. E estamos longe, mas longe, no “querer” do pai ou da mãe. E como ficam aqui agora os moralismos de: “filhos que não querem saber dos pais?”

E esses documentos (que são uma panóplia bíblica) nem sequer são explicados ao pai ou mãe, os visados principais. Aliás, a literacia dos mais velhos portugueses (e dos jovens!) não comporta tal linguagem e muitos erros se podem cometer ao assinar tais responsabilidades.

Antes de levantarem pedras, muitas pessoas deviam primeiro perceber que as famílias não são todas moldadas à imagem da perfeição ou da normalidade das suas próprias (assim fosse!). Depois, os filhos portugueses em idade jovem e madura estão cada vez menos saudáveis para cuidar de um pai , mãe… porque têm “vida” (substantivo por vezes também pobre). E começam a perder ainda mais saúde para cuidar de si, do filho e do pai.

Mas, o que mais me incomoda: quando os pais esbofeteiam (sem aspas!) todos os dias a vida de um filho e depois vem um assistente social (alienado) pedir responsabilidades que o filho não pode assegurar. Ou até o pai ou a mãe reivindica um apoio 24 horas a um filho, exigindo entre impropérios e que só magoam e ativam traumas.

Como comentadora televisiva sobre estes momentos (sobre os quais muito pouco se fala), já avivei que não vale a pena recomendar apoio psicossocial em lares (lares de família) que nunca tiveram laços. Em copo partido não se bebe.

Há soluções, sim há. E entre elas o perdão bonito diário. O telefonema escondido que os pais doentes não sabem que o filho faz constantemente para ver o que consegue fazer sem o pai ou a mãe saberem que até um rim lhe querem dar, ocultando a identidade, somente para os salvar (aos pais), mesmo que isso implique matar-se a si próprio. Decerto, encurtar a vida própria em prol de um pai ou mãe não é pedido, mas chega a ser visto como uma solução absoluta quando o carinho quase nunca existiu num lar. Então, não podendo fazer entender o sentimento (de que amamos incondicionalmente os pais) aos próprios pais, dá-se um rim? Que mais querem quando o coração já nos foi arrancado pelos próprios pais, em muitos casos?

Felizmente o coração regenera em amor pela vida toda, mas o rim não.

E quando preenchemos os tais documentos da segurança social e da direção de saúde regional em virtude do bem clínico do progenitor ou tutor, sabem o que ocorre? O pai ou a mãe (ou um tio ou um vizinho que multiplica a língua por 100, porque são pessoas sem noção da vida real de famílias disfuncionais) acusam esse filho de querer ser tutor malicioso de finanças e propriedades dos pais. De não “tomarem conta” do pai ou mãe. Já diz o provérbio que “quem está no convento, é que sabe o que lhe vai dentro”.

Não tomem essa decisão de ânimo leve: leiam bem esses documentos.  E se a tomarem, saibam que haverá sempre as beatas e vizinhos moralistas que estarão prontos como traças à porta da capela onde jaz, numa caixa de madeira, talvez de mogno, o pai ou a mãe um dia mais tarde.

Isto é um caso nada raro e é hipócrita quem usa vozeirão moralista para dizer que “a família é tudo” e está em primeiro lugar. Mas isto não é um pódio com lugares atribuídos por glória. Famílias não são perfeitas e há muitas que são tão disfuncionais que não dão lugar a um filho poder ter sequer relação para ajudar um pai. E aqui incluo pai como tutor biológico ou não. Importa é quem realmente cuida ou cuidou. Lugares, esses estão no céu.