No início, as notícias referentes ao vírus pareciam tiradas de uma cena em câmara lenta, como se se verificassem noutra dimensão, como parte de um pesadelo. Depois intensificaram-se e tornaram-se omnipresentes. Começava então a época do desabrido medo.

E cá vamos vivendo, neste gigantesco compressor de ansiedade. O medo é uma coisa estranha, torna as pessoas lentas e tristes, esvazia a mente a aguça o tormento. Sim, a crise é o assunto do momento, mas é importante referir que é também um tema recorrente na humanidade. Como sempre procuro fazer, busco um olhar alternativo sobre os assuntos. Acredito que a crise exige tudo de nós, liberta forças que estavam adormecidas e aprimora-nos como seres humanos. Uma crise pode tornar-nos pessoas melhores. Aliás, nós não seremos julgados pelas crises que atravessámos, mas pelo que fizemos com elas.

Os períodos de progresso parecem não ter alguma coisa a ver com as crises, mas muitas vezes são a consequência de uma. Mas para isso é preciso ir ao fundo das questões. Porque medicar o sintoma de qualquer doença sem explorar a sua causa é uma forma ocidental tipicamente estouvada de pensar que alguém pode realmente melhorar assim.

Não dá para negar que a insegurança veio para ficar. Para muitas famílias, os problemas parecem um choque em cadeia numa auto-estrada, uns a seguir aos outros. O ideal é que ninguém seja apanhado de surpresa nem comece a pensar em alternativas apenas após o pico da crise já instalada.

Uma nota que deveria ter sido prévia. Este artigo não se dirige às pessoas que perderam o emprego e que estão a viver o desespero com a violência de um bofetão, experimentando as piores condições – carência e violência atropelando-se em desordem. Nem aos que, sem os apoios do Estado, estariam a viver abaixo do limiar da pobreza, esse “local” turvo e venenoso, sobre o qual ninguém poderá falar sem por lá ter passado. Este artigo refere-se aos outros. Aos que estão a sentir a crise, mas que mantêm alguma, ainda que precária, estabilidade.

Acredito que os tempos de crise são a altura ideal para alterar comportamentos, iniciar processos de mudança e reflectir sobre o que é, para nós, o mais importante na vida. Julgo que precisamos de nos reinventar. Encontrar uma segunda oportunidade – para alguns, na verdade, uma primeira. Trata-se de um exercício pessoal complexo que requer disponibilidade, coragem e persistência, e que muitas vezes só acontece quando batemos no fundo do poço. Por isso digo que quando falamos em crise nem tudo é mau.

A instabilidade do emprego e dos rendimentos ao fim do mês pode ajudar a mudar hábitos de consumo e estilo de vida e isso pode significar uma excelente oportunidade para abandonar uma existência devotada ao superficial. E quando há muito a perder, ganhamos a força necessária para mudar em nós aquilo que já devíamos ter feito há muito.

O grande problema deste período de pandemia é que nos brinda também com uma crise nas relações, um golpe inesperado na conexão com o outro, de quem temos andado esquecidos. Antes da Covid-19, eu estava sempre a lembrar que para conviver não era preciso muito dinheiro – e isso era, para mim, a receita para um quotidiano mais satisfatório. Mas agora não há esse escape.

Não tendo espaço para repensar as dinâmicas relacionais, há que repensar as financeiras. Nunca como agora precisamos de avaliar cada gesto. É urgente que se analise detalhadamente os gastos mensais fixos e todos os eventuais. Porque o que acontece é que muitas vezes contabilizamos as despesas fixas, mas esquecemos o seguro anual do carro, as despesas médicas inesperadas, os imprevistos que teimam sempre em surgir.

Diria que as pessoas que ainda vivem com alguma folga financeira terão de olhar para uma tendência emergente na sociedade portuguesa, mas já muito popular entre os povos do norte da Europa: o neo-frugalismo. A corrente, popularizada em finais de 2008, num relatório do falido banco americano de investimento Merril Lynch é, desde há muito, defendida pelo economista e filósofo francês Serge Latouche (de que já falei detalhadamente numa das minhas crónicas anteriores), que nem sequer acredita no desenvolvimento sustentável. Apela, antes, ao “decrescimento convivial”, à diminuição dos níveis de produção para os índices nas décadas de 70-80 do século passado e à extinção da produção e do consumo de produtos em jeito fast food. Segundo Latouche, “é preciso descolonizar o nosso imaginário. Em especial, desistir do imaginário económico. Redescobrir que a verdadeira riqueza consiste no pleno desenvolvimento das relações sociais de convívio num mundo são, e que esse objectivo pode ser alcançado serenamente na frugalidade, na sobriedade, até mesmo numa certa austeridade no consumo material, ou seja, aquilo que alguns preconizaram sob o slogan gandhiano ou tolstoísta de simplicidade voluntária”.

Com mais ou menos frugalidade, o certo é que os nossos actos têm impacto no equilíbrio do planeta. Por isso, cada vez mais, as nossas compras deverão ser alvo de reflexão. A minha experiência diz-me que o ânimo não se desmorona se consumirmos menos coisas de que não precisamos realmente. Pelo contrário. Com menos consumo desnecessário, talvez o mundo encaixe um bocadinho mais no seu lugar – e quem sabe esta crise não seja uma oportunidade perdida e uma trégua que sabemos fugaz na devastação do planeta.